Modernismos alteram os casamentos tradicionais

Quando o alembamento vira negócio

O alembamento é um costume que, na cultura tradicional bantu, precede ao casamento. É um instrumento que visa legitimar a união entre duas famílias. Apesar dos efeitos da modernidade, ainda se mantém firme nas zonas rurais. Especialistas e chefes de família defendem que actualmente os alembamentos “são comerciais”, porque não valorizam nem a mulher nem a família.

Quando o alembamento  vira negócio
Santos Samuesseca
Artigos que compõem o dote
Engrácia de Oliveira

Engrácia de Oliveira antropóloga

As pessoas começam a deixar de preservar o que é cultural e adoptar práticas de outras culturas.

Derivada do quimbundo, alembamento significa ‘aliança’, que deriva do termo ‘kulemba’, que quer dizer ‘consolar’, do qual derivou o substantivo ‘dilemba’, que significa ‘tio materno’, o ancião ou aquele que controla a parte materna do filho ou da filha que se vai casar tradicionalmente. É um costume que, na cultura tradicional bantu, precede ao casamento e continua a ser uma tradição “muito forte” em algumas regiões, apesar dos “efeitos da modernidade” serem mais visíveis nas zonas mais urbanizadas, defende o sociólogo e docente universitário Walter Lopes. Serve como instrumento que visa legitimar a união entre duas famílias de acordo com a tradição de cada região, marcada pela economia, hábitos e valores culturais.

Diferente da cultura asiática, em que a família da mulher tem de preparar o dote para dar ao homem, na tradição bantu e africana é a família do noivo que entrega à família da noiva uma compensação, que pode ser em bens alimentares, bebidas, dinheiro ou outros objectos valiosos.

Apesar dos bens que são entregues na cerimónia, o sociólogo alerta que o alembamento “não é um processo de venda da mulher” por parte da família e explica que o acto “se reveste de um valor simbólico que valoriza a noiva” e compensa a família da noiva pela perda do seu ente, uma vez que as mulheres nas famílias bantu “são actores da produção económica”.

A antropóloga Engrácia de Oliveira defende a mesma opinião e acrescenta que o alembamento “é o que nós conhecemos por dote”, que só deve ser concretizado depois de a família do noivo manter o primeiro contacto com a família da noiva e concordarem com os bens a levar. São costumes que variam de área. A antropóloga conhece regiões em que “o alembamento é mais importante do que o casamento civil”.

Os modernismos do alembamento

Actualmente, nos alembamentos, pedem-se terrenos para a construção, cabeças de gado, fios de ouro, valores estipulados acima de 100 mil kwanzas, entre outros bens, como grades de cerveja e de gasosa e bebidas espirituosas. Engrácia de Oliveira encontra aqui um “fenómeno de aculturação e oportunismo”, apesar de reconhecer que esta prática é “mais vista em Luanda”, podendo-se correr riscos de perder alguns valores culturais. As pessoas começam a deixar de preservar o que é cultural e adoptar práticas de outras culturas”.

Walter Lopes entende que, por as sociedades serem dinâmicas, deve-se dizer que “há uma afirmação de novos valores familiares” e não propriamente “perda dos valores familiares”. Acrescenta que “este tipo de comportamento social só será legitimado quando grande parte da sociedade aceitar e praticar, tornando-o parte integrante da cultura”.

Preocupado com o modernismo encontra-se Alexandre Manuel dos Santos, chefe de família e responsável pelas conversas mantidas nas cerimónias tradicionais há mais de 30 anos. Acredita que hoje os alembamentos “são comerciais”, em que “não se valoriza a mulher e a família” e que “há famílias que encontram no alembamento uma maneira de facturar”.

O chefe de família lembra que “anteriormente se valorizava mais a pessoa do que o bem material”. As coisas que são dadas no pedido são os dotes, é tradição, mas é diferente do contexto de hoje”, lamenta.

Alexandre dos Santos condena a maneira como hoje as famílias se excedem na lista de pedidos. “Antigamente não se fazia listas, porque as famílias já tinham em mente o que deviam levar, por respeito às outras famílias. O dinheiro era algo simbólico e servia para comprar o enxoval da noiva.”

Alembamentos arranjados

Antigamente, os alembamentos eram arranjados. As famílias controlavam o comportamento dos filhos e os valores culturais das outras famílias, para depois selar um compromisso entre si. Valorizava-se os hábitos e costumes e os valores culturais. Os pais não deixavam que os filhos fossem viver com famílias sem condições sociais, esclarece Alexandre Manuel dos Santos. “Actualmente, as filhas vão arranjar marido, mas são os pais que têm de comprar o leite e as fraldas da criança”, lamenta.

Modernismos podem prejudicar

De acordo com o sociólogo Walter Lopes, em algumas culturas, “o casamento fica condicionado impreterivelmente pela entrega do alembamento” e, quando assim não acontece, o casal “não goza de aprovação da família, sendo sancionado com algumas restrições sociais”.

Para a antropóloga Engrácia de Oliveira, hoje há muitos divórcios por “não se respeitar os costumes tradicionais”, justificando que há jovens que partem para a vida a dois sem o consentimento das famílias, sem mesmo realizar o alembamento. “Sobre os casamentos que se faziam por arranjos antigamente, dizíamos que não era bom! Mas esquecemo-nos do outro lado. Porque os pais procuravam conhecer os comportamentos das famílias em que a sua filha devia entrar.”

Fora da lei

De acordo com Domingos Betico, jurista e docente universitário, do ponto de vista legal, o alembamento, chamado também de ‘casamento tradicional’, “não tem relevância jurídica no direito angolano”. Mas explica que, à luz do artigo 7.ª da Constituição aprovada em 2010, há a figura do costume”. O ordenamento jurídico tem consagração constitucional, o que pressupõe que quer o costume, quer a lei estão no mesmo nível, não obstante as leis ordinárias não darem essa relevância ao costume (casamento tradicional).

“O costume tem de facto força jurídica na nossa Constituição, embora não haja uma lei ordinária e infra-constitucional que dê a salvaguarda, que releve o casamento tradicional como tal, mas isso não pressupõe que deixa de atender algumas situações que nos possam surgir do ponto de vista factual e jurídico”, explica.

O que fazer

Por falta de serviços administrativos, em algumas zonas, alguns conflitos familiares são resolvidos por autoridades tradicionais, que também têm relevância jurídico-constitucional.

Segundo esclarece o jurista, se eventualmente um dos companheiros vier a falecer e essa pessoa não for casado e haver necessidade de partilhar a herança, do ponto de vista constitucional, o artigo 35.º estabelece a igualdade entre os filhos perante a lei. Em relação à viúva, o código de família não reconhece o casamento como tal, mas o costume, que também tem força jurídica, reconhece o casamento tradicional. O soba, que é autoridade naquela localidade, pode efectuar a partilha da herança deixada pelo falecido aos herdeiros, desde que não atente contra a dignidade da pessoa, nem contra a  constituição. “Isso está previsto no artigo 7.ª”, reforça o jurista. No caso de famílias com linhagens matriarcal ou patriarcal, dá-se primazia, por exemplo, aos irmãos de quem morreu, em detrimento da viúva. “É um atentado à dignidade da pessoa”, sentencia. Nestes casos e apesar da orientação do soba, quem se sentir prejudicada pode impugnar a decisão da autoridade tradicional. Ou ainda intentar uma acção judicial.

 

 

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