Resistir ao selo fiscal, um paradoxo surpreendente

Durante anos, os produtores de bebidas em Angola exigiram ao Estado resolver dois problemas candentes: a concorrência desleal dos operadores fantasma que produzem sem regras, alimentam o mercado informal e fogem aos impostos; e a falta de fiscalização do sector, que põe em risco as empresas formais e a saúde dos consumidores. No ano passado, as autoridades deram ouvidos aos empresários e criaram o Programa Nacional de Selos Fiscais de Alta Segurança (PROSEFA). Num volte-face surpreendente, o programa que vai pôr ordem no mercado sofre agora a resistência de quem sempre exigiu a regulamentação do sector – nem mais nem menos que os próprios produtores de bebidas.

Resistir ao selo fiscal, um paradoxo surpreendente

Em Julho de 2021, no programa “Directo ao Ponto”, da TV Zimbo, Diogo Caldas, do Conselho Fiscal da Associação Industrial de Bebidas de Angola (AIBA), denunciava: “Existe uma grande concorrência desleal no nosso sector em várias vertentes, começando pelo lado tributário, onde há muitos que não pagam impostos”. No mesmo programa, Diogo Caldas era secundado por Ágata Russel, também membro da associação. “O Estado está a perder receitas que poderia estar a angariar com quem fazer bem as coisas”.

Às críticas sobre a falta de regulação, juntaram-se comentários sobre a fiscalização precária deste mercado. “As indústrias que são fechadas” por quebrar as regras, disse Diogo Caldas, “instalam-se depois num outro quintal ou num outro armazém, são fábricas que têm muito poucas condições de higiene e poucas condições para os seus trabalhadores, não pagam impostos”. “É muito crítico”, concluiu.

“Crítico” é uma boa palavra para descrever o panorama. A luta da AIBA por proteger o sector é legítima e as preocupações que expôs no “Directo ao Ponto” são mais que fundamentadas. Como denunciaram, esta actividade económica é dominada pela informalidade e por “paraquedistas” que inundam o mercado com bebidas de origem duvidosa. Não pagam impostos, não respeitam padrões de qualidade, actuam na ilegalidade absoluta. Para eles, o negócio é redondo: reduzem os custos ao mínimo sem cumprir regra alguma e elevam os lucros a níveis estratosféricos.

Neste cenário complicado, os produtores formais e certificados saem a perder. As empresas sérias investem quantidades enormes para garantir a qualidade das bebidas que lançam no mercado. Cumprem as leis, pagam impostos, fazem “bem as coisas”, usando a expressão de Ágata Russel. No entanto, em vez de serem compensadas por isso, são encostadas à parede pela concorrência desleal.

Ciente desta desigualdade, o governo tomou medidas contundentes e lançou o PROSEFA, programa de selos fiscais para as bebidas alcoólicas, açucaradas e também para o tabaco e seus sucedâneos. Como noutras partes do mundo, o selo é a forma mais ágil e eficaz de regular este tipo de mercados. Permitirá, sem subterfúgios, controlar e fiscalizar quem paga ou não o Imposto Especial sobre o Consumo (IEC) a que estão obrigadas as bebidas alcoólicas e açucaradas, remetendo os infractores às autoridades correspondentes. Será também fundamental para conhecer a origem dos produtos, quem os fabrica e até para comparar a produção real com a declarada ao fisco, expondo possíveis discrepâncias manhosas.

Desta forma, o Estado garantirá a tal justiça tributária que a AIBA tanto exige, e com razão. E é aqui que se dá um paradoxo: se há poucos meses, a AIBA exigia ao governo medidas de fundo para o combate à concorrência desleal, hoje opõe-se com contundência à solução mais lógica para resolver o problema: os selos fiscais. O PROSEFA é a única forma de combater as actividades ilícitas? Seguramente que não. Mas é a mais eficaz, como o comprovam pesquisas feitas noutros países e corroboradas pelo Banco Mundial e várias organizações, que apontam para a redução de contrabando e produtos contrafeitos na ordem dos 50%, depois da introdução de medidas similares.

As contradições prosseguem. No programa da TV Zimbo, Ágata Russel, membro da AIBA, comentava que no cenário actual, dominado pela contrafacção e adulteração de bebidas, o consumidor “não sabe o que está a consumir”. “É uma questão de saúde pública”, exclamava (uma vez mais, com toda a razão). Como é público, esta também é uma das preocupações do PROSEFA, que apresenta soluções contundentes para mitigar o problema. A capacidade de rastear os produtos selados desde o ponto de produção até ao posto de venda, permitirá retirar rapidamente do mercado produtos adulterados. Por outro lado, um possível aumento de preços de venda ao consumidor (totalmente ao critério dos empresários e vendedores) poderá desincentivar o consumo de bebidas potencialmente danosas para a saúde.

Mais uma vez, o que parecia ser uma medida consensual, acabou por não o ser. Num comunicado de imprensa recente, a AIBA inferiu que entende a aposição de selos em “bens como o tabaco e bebidas espirituosas” com “valor unitário mais elevado”, mas que “não vê vantagem para o consumidor ou para a indústria” na inclusão das cervejas, refrigerantes ou águas açucaradas no PROSEFA. Indica inclusivamente que estes produtos, afinal, não são tidos nem achados pelos contrafactores.

O que a AIBA parece não entender é que, o que para os empresários é um “não problema”, na verdade é uma maka das grandes em termos de saúde pública em Angola (a mesma saúde pública que defendia com unhas e dentes há poucos meses). O alcoolismo galopante no nosso país não é feito de borbulhas de champanhe cara ou de destilados escoceses – são precisamente as bebidas mais acessíveis as que disparam esta epidemia que mata, causa cirroses hepáticas, cancros, doenças cardiovasculares, que provocam transtornos mentais e comportamentais. E que tal os refrigerantes e bebidas açucaradas e os índices de diabetes e obesidade que são, por si só, um atestado de vida a prazo?

Os industriais de bebidas têm uma responsabilidade social importantíssima e não podem usar o argumento de “saúde pública” como arma de arremesso demagógica contra o Estado, unicamente para atingir os seus fins económicos. Têm que ser consequentes e reconhecer que a preocupação de Angola não é um capricho, mas sim parte de uma discussão global séria, promovida e avalada por instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Se a AIBA não vê “qualquer vantagem” na selagem de todas as bebidas alcoólicas e açucaradas, pois a OMS, que conhece a realidade a nível mundial e não somente o seu próprio umbigo, confirma que medidas como os selos fiscais ou o agravamento de taxas e impostos sobre bebidas alcoólicas e açucaradas têm um impacto real na melhoria da saúde pública global.

No fundo, o esgrimir de argumentos parece querer distrair tudo e todos da real preocupação da AIBA – a necessidade de fazer adaptações nas linhas de produção para cumprir as regras do PROSEFA e que, comenta, podem aumentar o preço das bebidas. Os investimentos adicionais necessários são baixos, mas reais, porém o esforço para ter um mercado funcional e regulado não pode partir só do executivo. Na verdade, se de incentivos falamos, o governo tem demonstrado uma enorme flexibilidade para entender os problemas deste sector em específico e viabilizá-lo economicamente.

Quando, em 2019, o IEC sobre as bebidas subiu de 16% para 25%, os empresários exigiram imediatamente a reversão da medida. O governo encetou, então, negociações exitosas. Em finais de 2020, reduziu o IEC de 25% para 8%, para os refrigerantes e 11% para as cervejas e sidras – valores inclusivamente mais baixos do que os 16% cobrados em 2019.

Esta redução significativa foi fruto de um acordo entre as autoridades e a indústria de bebidas, demonstrando que não há medidas unilaterais e que não há uma corrida febril aos impostos por parte do executivo (o selo fiscal nem sequer é um imposto). Pondo as cartas em cima da mesa é possível encontrar consensos e atuar em prol da proteção da população e da correcta arrecadação dos tributos.

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