E agora pergunto eu...

D.R

Ultimamente, Angola parece só fazer por merecer chamadas de atenção lá de fora, raspanetes e ralhetes como se fosse criança travessa.

Um desses últimos ralhetes veio da Organização Mundial do Comércio (OMC), que, pela voz dos membros Rússia, União Europeia e EUA, voltou a repreender Angola por causa do decreto que, no âmbito do Prodesi, cria uma lista de produtos cuja produção nacional se quer incentivar e proteger, e que, por isso, se desincentiva a importação. Os EUA que disseram que presam o parceiro comercial Angola, mas que os investidores internacionais estão confusos com as medidas e com a sua implementação. E tudo isto deixa a imagem de um governo confuso e errático lá fora. O ralhete foi mesmo tipo mais velho para criança, sobretudo porque, segundo os EUA e a Rússia, a explicação que Angola deu foi atabalhoada, fora das normas e canais apropriados para o fazer, sem o devido processo, enfim, à bruta, com mais musculo do que cabeça,  como já se tornou marca do Governo.

Angola tem um desafio enorme que é o de reeducar todo o tecido económico do país para deixar de viver de petróleo e do Estado, e corrigir vícios que prejudicam as cadeias de produção interna e impedem a sua sustentabilidade.

Um desses vícios é, sem dúvida, vivermos de importação e outro é importação para exportação de divisas que arrasam a produção interna e secam a economia do país. A medida de proteger o que cá se produz é acertada, assim como é a de corte da cedência de divisas públicas para a importação de produtos que o país já produz que também veio no âmbito do Prodesi e só peca por tardia. O Governo não proibiu a importação, só disse, “se querem importar o que se produz aqui, então usem as vossas divisas em vez das do BNA”. As reservas internacionais quedaram 40% nos últimos três anos, por isso é vital reorganizar prioridades. Esta medida é corajosa porque põe um travão a um dos principais impeditivos à produção interna que, com os custos que tem não, consegue competir com as importações e, por outro lado, põe um travão a um dos canais de fuga de capitais mais importantes do país, que é a importação. Uma medida corajosa...

“Corajoso” é, no entanto, um adjectivo que se tornou duvidoso porque o Governo e o partido no poder o vilipendiaram de forma abusiva até o descaracterizem completamente nas tentativas de enaltecer o chefe pelo seu combate à corrupção, que “todas as mães já sabem” que é só à corrupção de alguns, com critérios subjectivos, assim aqueles de quem não gosta ou que dão jeito à agenda política. Na mesma semana em que o PR se tornou alvo de todas as inadmissíveis chacotas por causa do novo código penal, a SIC “teve acesso” a um dossier sobre mais de 3 mil milhões de USD que passaram para uma empresa do ex-vice-Presidente, e pergunto-me se o timing poderia ter sido mais oportuno... 3 mil milhões são milhões suficientes para distrair a opinião pública de temas incómodos para o Governo. Esse combate à corrupção instrumentalizado, manipulado, sempre cheio de contradições e critérios dissimulados, usado desabridamente para servir uma agenda política, torna-se assim cada vez mais a antítese, o oposto de ‘corajoso’.

Utilizar a força para esmagar quem não tem força, é precisamente o contrário de coragem, é cobardia. E, por mais que se engrosse o número de pessoas a repetir “corajoso, corajoso, corajoso”, por mais alto que batam palmas a realidade de que usar a força seja ela física, politica, judicial policial ou mediática, usar a força para esmagar quem é mais fraco ou está mais fraco é e vai continuar a ser sempre o oposto de coragem, vai continuar a ser sempre cobardia e cobarde quem o defende.

A definição de coragem é enfrentar os mais poderosos para defesa do que é o melhor para todos, para defesa de ideais. Coragem teve o jovem estudante Inocêncio de Matos, que perdeu a vida às mãos da polícia porque protestou contra a falta de tudo de que milhões de angolanos sofrem. Coragem é a do seu pai que tem de enterrar um filho, apesar de lembrar que “perder um filho no terceiro ano da faculdade é perder a esperança da prosperidade familiar”. Toda a repressão de que foram vítimas e que continuam a ser com as mais idiotas e desalmadas iniciativas como desaparecer com o corpo para evitar a autópsia, proibir homenagens e vigílias, apagar murais, toda a força de todo o tipo usada para silenciar estes corajosos não tem outro nome senão cobardia.

Mas no caso do Prodesi, o Governo foi corajoso porque, naquela arena, é um ‘mais fraco’ a tentar proteger o objectivo de reestruturar a economia nacional e de dar espaço à produção interna, coisa que, com o petróleo em declínio, é urgente. E está a proteger esse objectivo urgente mesmo correndo o risco de antagonizar poderosos como a Rússia, a União Europeia e os EUA.

As medidas têm é de ser adequadas às regras que subscrevemos a nível das organizações internacionais porque, segundo os especialistas, há maneiras inteligentes de proteger a produção nacional sem quebrar as regras da OMC. O que faltou aqui foi mesmo a humildade de ouvir e perceber como o fazer usando a cabeça em vez do músculo.

Outro ralhete que se juntou aos de várias organizações internacionais motivados pelas reacções do Governo às manifestações veio da União Europeia, que lembrou o Governo de que as liberdades de expressão e de reunião não podem desaparecer quando há desafios e a covid-19 não é para servir de desculpa para atropelar essas liberdades.

E agora pergunto eu porque é que, em pleno século 21, e num país que já teve de lutar tanto para conquistar essas mesmas liberdades, estamos ainda a receber ralhetes desta natureza vindos de fora? Onde estão as pessoas que lutaram tanto por essas liberdades dentro do Governo? Porque se calam? O jovem que morreu podia ser filho, primo, irmão de qualquer um dos muitos governantes que temos, morreu às mãos das instituições que o deviam proteger, como é possível as mesmas pessoas que lutaram pela liberdade mascararem agora essa falência? Onde está a empatia com a família, com o pai, antigo combatente? Onde está a decência?