E agora pergunto eu...

 

O VALOR trazia, na semana passada, uma reportagem dolorosa sobre como sobrevivem os professores nesta fase com as instituições de ensino de portas fechadas e sem poderem cobrar propinas ou pagar salários por falta de dinheiro. Muitos voltaram para casa dos pais, outros resistem com fome e tentando inventar biscates para ter o que comer e dar aos filhos, outros tantos sobrevivem de mão estendida, recurso com tempo de vida útil muito limitado.

Não há menção de segurança social. O Estado que devia intervir em situações de desemprego e de vulnerabilidade extrema como a que assistimos com esta classe, e com tantas outras, anda entretido com a gestão de obras eleitoralistas, com guerras intestinas e partidárias e com o covid-19 (que esperemos não se tornar noutro sorvedouro). 

A fome, que os governantes geralmente de abdómens protuberantes tanto se esforçam para desmentir, vai-se banalizando entre nós e já não é possível circunscrevê-la lá longe dos olhos onde já era comum, no sul do país.

Angola importou, no primeiro trimestre do ano, menos 31% de comida e o nosso Governo, num momento digno da melhor stand up comedy, tipo Tuneza ou Calado Show, bate palmas a si próprio atribuindo essa redução de um terço, não a uma quebra brutal da actividade económica e sobretudo do poder de compra, mas a um suposto aumento de produção interna, numa fase em que as empresas se mantêm a funcionar por um fio.

A actualidade económica foi marcada por mais confiscos, desta feita, de três edifícios faraónicos no eixo viário e que já andavam mais ou menos ao abandono pelo menos parcial. O jornal Nova Gazeta escreveu a certa altura sobre como as águas paradas das piscinas e fontes se iam tornando um viveiro de mosquitos e doenças para quem tem de ali passar.

O arresto foi mais ou menos celebrado online porque os donos só poderiam ser marimbondos, mas a verdade é que, se for feita utilização e manutenção, doravante esse confisco até se pode tornar um favor pelo menos no caso dos prédios vazios.

Esperemos que o Governo dê bom uso aos edifícios caso se prove que foram feitos com fundos desviados, mas pergunto-me é se haverá tempo para esperar provar-se seja o que for?

O fenomenal Ébano escrito pelo repórter polaco Kapuscinski, (e que só descobri por via de um daqueles desafios do Facebook que normalmente evito), descreve como a africanização, dos processos de independência, tomava dos brancos as vidas de lord que levavam com grandes e luxuosas casas que eram a compensação por virem para África, e como esse processo formava uma classe de novos ricos do dia para a noite. “Num abrir e fechar de olhos um golpe de Estado faz surgir uma nova classe dominante, uma burguesia burocrática que nada faz, nada produz apenas controla a sociedade e goza de inúmeros privilégios – a lei da velocidade desenfreada aplica-se.”

Palavras escritas há décadas e que ainda hoje são tão aplicáveis. Parecemos ter tomado o gosto às independências e volta e meia procurámo-las, nem que para isso tenhamos de criar inimigos de entre amigos.

Voltando aos nossos confiscos, alguns a que se seguem ocupações tão rápidas que nenhum tribunal conseguiria acompanhar, há outra passagem do livro que se aplica à nossa realidade, quando o autor descreve o que acontece quando são tomadas as riquezas que se está habituado a só ver à distância: “a pacata residência onde habitava um velho inglês com a sua lacónica mulher torna-se pequena e barulhenta. Em frente à casa arde de dia e noite uma fogueira, as mulheres trituram mandioca no almofariz de madeira, as crianças correm por entre canteiros, à noite toda a família se acocora na relva para jantar, mantêm se os mesmo hábitos dos tempos de miséria”.

Hoje em dia não se mantêm todos os hábitos dos tempos de miséria, mas certamente se mantém a mesma necessidade da velocidade desenfreada e a falta se saber cuidar do que não se construiu com as próprias mãos, a falta de manutenção. Não há fogueiras à porta dos edifícios e casas confiscados, mas elevadores e canalizações a pararem por falta de manutenção, rachas a esventrarem paredes, bichos a tomarem conta, tudo isto é mais do que provável.

A outra marca recente na actualidade foi a morte de Kundi Paiama, uma tremenda ‘saia justa’ porque o histórico do partido maioritário era classificado ‘team marimbondo’, e o seu passamento obriga a lembrar que há muito marimbondo idoso a quem se voltaram as costas, de quem se finge não saber o nome que se evita a custo pronunciar. Mas que, se morrem, vai ficar mal não dizer nada, vai ser desconfortável, vai obrigar a dizer qualquer coisinha. Ainda que visivelmente forçada e atabalhoada.

Como estamos acostumados a palavras vazias de conteúdo, arranjamos sempre maneira de desdizer a narrativa que se vinha apregoando e, “ressalvar feitos heróicos pela nação”. Mas e agora pergunto eu, o que diriam se fosse JES que também é mais velho? Será que o seu partido iria abrir mão de ter uma figura para culpar de todos os males e render-lhe honras? Culpar quem já cá não está fica feio e até dá azar para os mais supersticiosos. Ou será iam continuar a fingir que não existiu na história enquanto se apagam os vestígios das notas, das universidades de tudo quanto ontem se bajulava incrivelmente e hoje serve de vergonha ou até se atira pedras? Quanto tempo ficaria o partido em peso suspenso à espera da reacção do chefe? Quão forçados seriam os discursos? Porque será que só fazemos esse exercício de celebrar feitos positivos quando as pessoas se vão? Quando já não tem utilidade nenhuma para elas?