Agora pergunto eu...

A actualidade foi marcada pela mediatiquissima visita do PR aos hospitais que motivou até a elaboração de filmes curtos ‘online’, com ‘slowmotion’ tipo videoclipe ou venda de alguma coisa cara, em que a visita começa na chegada da ‘entourage’ ao hospital, qual epopeia. Visto que cá vem o ‘ti Celito’, talvez ele possa mostrar como é que se visita tudo e todos sem aparato e de forma tão sistemática, que só se estranha a ausência da figura quando não aparece, exemplo foi a visita ao (tornado famoso por angolanos) Bairro da Jamaica, que tanto ofendeu a moral da polícia portuguesa.

Fora a mesma ridícula pompa disruptiva em que os funcionários são convocados e têm de parar todos os seus afazeres (o que num hospital pode significar um mau bocado para algum paciente) para ir fazer número e corpo presente para receber o chefe (os legados ruins da era JES a manterem-se teimosamente vivos), foi animador ouvir da boca do PR que a saúde é uma prioridade absoluta do seu governo. Morre-se demasiado nos nossos hospitais, centros de saúde e periferias sem um nem outro, perdem-se muitas crianças e há demasiada complacência com essas mortes para que a saúde não seja absolutamente prioritária.

De resto, a facilidade com que se distrai a opinião pública de temas de verdadeira importância, como o próprio estado do sector da saúde ou o desemprego ou a inflação, é assombrosa.

As redes sociais andaram a ferver com os rumores de que Higino Carneiro se defendeu na PGR evocando ‘fraude eleitoral’ para garantir a vitória do MPLA nas eleições que levaram João Lourenço e toda a brigada anti-corrupção (a começar pela que o interrogava) ao poder. Este tema disputou atenção com os ‘panastramentos’ (não conhecia a palavra hilária) dos famosos e famosas como se assunto de quem dorme com quem fosse de interesse público e que, por sua vez, disputa o ‘top’ dos temas com os ataques e contra-ataques às e das irmãs dos Santos (que, diga-se de passagem, parecem recolher a fatia grande da testosterona familiar) versus a multidão que se amontoa para também, como se não tivesse telhados de vidro que tem, atirar a sua pedrita a quem já está no chão. O nível decadente a que chegam tanto atacantes como atacados é indecoroso, obsceno, vergonhoso e embaraçoso para todos.

A média-alta sociedade angolana, aquela que já não pertence ao povo (que esse, coitado, além de humildade tem de se dedicar à sobrevivência sobrando pouco tempo para fóruns assunteiros) e que se mascara normalmente para mais do que é a nível financeiro, de posição social ou intelectual, seria um verdadeiro caso de estudo para a capacidade camaleónica de grupo quando se trata de auto-preservação social. Hoje quase todos revelam ter-se sentido oprimidos e vitimas da gestão de JES. Não sendo socióloga, e saindo da minha zona de conforto, assistir à mudança de pele generalizada de tanta gente que vivia a gravitar à volta do clã Dos Santos, lembra aquelas experiências com macacos enjaulados em que o objectivo era chegar à banana e que ao que tocasse o sino se lha entregava até que o outro aprendesse a fazê-lo também. É impressionante a velocidade com que gente, que se orgulhava da proximidade à antiga família presidencial, agora quer publicamente demonstrar o seu desdém e adoptar um discurso que, à época, era da oposição e de uns poucos corajosos. Todo o mundo diz que no anterior governo não havia liberdade e não se podia falar, mencionam-se perseguições, mostram-se chocados com a corrupção da era anterior e dizem agora respirar de alívio sob a nova gestão.

Pergunto-me o que sentem aqueles que sempre foram coerentes e intrépidos nas críticas à gestão de JES e todos os seus muitos defeitos, ao verem repentinamente aqueles que o endeusavam adoptarem os seus discursos como se sempre os tivessem tido. Pergunto-me se não se sentirá assustado o actual dono da cadeira ao ver a facilidade e a rapidez com que o outro, que, durante décadas foi um ‘deus na terra de solo vermelho’, passou de bestial a besta. E agora pergunto eu: qual é a impressão genérica que esse tipo de dirigente ‘muda pele tipo cobra’ passa para os governados? Mais grave: qual é a imagem que passa para investidores, que é o que é preciso numa fase em que as empresas estão a morrer? Dá para confiar numa criatura que toda a vida disse ser cão, mas afinal agora é gato e diz que na verdade sempre foi gato, mas sentia-se obrigado a convencer todos de que era cão? Dá para investir num país de gatos que se mascaravam de cão e que, na verdade, nem se sabe se é marimbondo, salalé, camaleão ou outro bicho qualquer? Confiança, base do mais pequeno investimento, fica aonde? “Karma, karma, karma, karma, karma chameleon/You come and go, you come and go...”. Conhece este som dos anos 1980, querido leitor?