Agora pergunto eu...

Continuo sem perceber a revolta em torno do aumento do passaporte... É certo que um aumento escandaloso – acima de 10 vezes –, no que é um direito adquirido, parece contribuir para o aprofundar do fosso entre ricos viajantes e pobres que apenas sonham viajar e que vêem assim o sonho tornar-se mais distante. Mas e agora pergunto eu, com tanta coisa que merece fúria popular, que a justifica e até mesmo que a pede, a comoção contra o aumento do emolumento para pedido do passaporte justifica-se? É que vêm aí subidas de transportes, de combustível e de tudo o resto menos dos salários, que vão em sentido contrário...

Correm petições, convocatórias para manifestações, uma grande celeuma, por um documento só necessário para viagens para fora do país e que só são possíveis tendo em mãos várias vezes mais do que o novo valor do documento.

Manifestações por falta de água de que precisamos para viver, justificam-se. Fúria popular pela falta de emprego que é um cancro social que não para de metastizar e que seca tudo à volta, essa sim, é merecida. A desnutrição que continua a matar tantas crianças, quase 40 por cento das crianças angolanas a passar fome como lembra o seu companheiro fiel das quintas-feiras, até pede, convoca a fúria popular... Agora, fúria popular por um documento não essencial, que a maioria dos angolanos nem vai usar porque viajar é um devaneio longínquo, e quando quase metade da população nem tem bilhete de identidade? Francamente, querido leitor, escapa à compreensão.

Reconheço, no entanto, que há muita coisa que me ultrapassa ou que escapa ao meu entendimento, razão pela qual este é e continuará a ser um espaço bem mais de perguntas do que de tentativas de respostas.

Não entendo, por exemplo, nunca entendi, a necessidade de cumprimentos ao Chefe de Estado à saída e no regresso a qualquer viagenzinha. Cumprimentos que empandeiram completamente o trânsito na cidade porque são imensos carros com as devidas escoltas a piorarem um caos já de norma caótico nas ruas da capital, apenas e só para apertar a mão ao Chefe à entrada e à saída do avião. Para não falar que são horas de trabalho ministerial e de administração pública empregadas num beija-mão que já acontece com frequência suficiente em cada reunião governamental. Pergunto-me se depois dos cumprimentos protocolares de toda a espera à sombra e ao sol depois no tapete vermelho, se os ministros sequer conseguem trabalhar... É que se vai o dia nisso.

A propósito de desperdício de horas de trabalho, não entendo, por exemplo, porque é que o Governo despendeu múltiplas horas de trabalho remunerado, tanto do Executivo como da Assembleia, para aprovar um Orçamento Geral do Estado (OGE) tão sonhador que se tornava obra de ficção, quando todos os economistas da praça e arredores alertavam para o futuro falhanço e para o cuidado com as expectativas num cenário de instabilidade do preço do petróleo e de agravamento das condições económicas.

Tanto os ditos cumprimentos ao Chefe quanto as rectificações ao OGE são heranças claras da anterior gestão do país. Sempre aconteceram, pergunto-me se serão mesmo parte do ADN do partido no poder, mas provavelmente qualquer outro governo iria manter estas nulidades, só porque já é hábito... Outra coisa que só pode ser herança, da pior espécie, é o alegado retorno daquela figura abjecta que todos esperávamos defunta, a do chefe ‘ordens superiores’, que fez a sua ignóbil ‘reentrée’, na forma de explicação da retirada do avião do antigo ministro da Comunicação Social e actual deputado, Manuel Rabelais... 

Ainda olhando para a actualidade, não percebo também o que explica o atípico silêncio e falta de reacção à exposição na imprensa internacional de ligações entre empresas geridas pelo PR, enquanto ministro da Defesa de JES, à investigação americana, que em Moçambique já levou à detenção do antigo ministro das Finanças e poderá envolver também o presidente daquele país? É evidente que o PR, pelo cargo que ocupa, se pode tornar o alvo de tentativas infundadas de destruição de imagem, é algo que vem com o pacote de funções e de que não faltam vítimas. No entanto, uma das diferenças mais positivas entre a sua gestão e a do passado é precisamente uma edificante preocupação com o esclarecimento da opinião pública que JES nunca demonstrou, e que ajudou a torná-lo tão distante e impopular...