Agora pergunto eu...

Agora pergunto eu...

seu companheiro das quintas-feiras traz-lhe esta semana uma reportagem que anda na forja há imenso tempo por ser um daqueles assuntos espinhosos que infelizmente fazem parte da realidade do nosso dia a dia, o assédio sexual.
É um tema inglório porque a dificuldade de contar as histórias na primeira pessoa é enorme, as vítimas frequentemente não se querem expor, têm vergonha e receio de represálias, é inglório porque não existem estatísticas minimamente fiáveis porque as denúncias são sempre uma fracção do número diário de ‘ocorrências’ e é inglório porque quem elabora o trabalho, ou emite opinião sobre o assunto, fica sempre com a sensação de estar a descrever uma gota de água em meio de um oceano.
Discussões sobre o assunto são frequentemente mais inglórias ainda entre nós, devido à ausência de legislação, de que se queixa a União Nacional dos Trabalhadores Angola (UNTA) e são inglórias porque facilmente resvalam para não assuntos como “são as funcionárias que seduzem os chefes” e argumentos afins.
Não é, querido leitor, que o assédio de funcionárias ou funcionários para com os chefes ou responsáveis não exista. Não faria tal afirmação num meio em que frequentemente se usam favores sexuais ou promessas de favores como cunho de promoção. Existe assédio de vários tipos de cima para baixo, de baixo para cima, de homens para mulheres, de mulheres para homens, e mais assédios de ordem religiosa, racial, regional, e de tudo quanto o ser humano inventa para objectificar o seu semelhante sem ter de dar ouvidos à consciência. O que acontece é que quando se trata de assédio de patrão para com funcionário, o assunto é bem mais grave, porque se trata de uma relação de poder e em que o perigo de coacção ou de intimidação (no fundo, a cobardia) pesam sobre a parte mais vulnerável. Quando é o patrão a ‘vitima’ de assédio, é muito mais fácil não se tornar vítima porque tem o poder na relação laboral e facilidade em dizer NÃO.
O assédio é também um assunto inglório por ser corriqueiro. Nos EUA, 67 por cento das mulheres diz-se ter sido vítima de assédio, na Inglaterra, 67 por cento, no Brasil, 86 por cento e no Egipto 99 por cento. Depois é inglório porque, devido à carga tácita que encerra, pode ser eivado de hipocrisias e falsas acusações ou percepções. No dia em que escrevo estas palavras, o movimento ‘Me Too’ que nos EUA denunciou vários casos de assédio e abuso sexual entre famosos de Hollywood, e levou à queda estrondosa de um dos seus mais imperiais realizadores, Harvey Weinstein, sofreu um golpe brutal com a descoberta de que uma das suas timoneiras, a actriz Asia Argento, terá assediado e molestado sexualmente um rapaz de 17 anos, pagando depois 380 mil dólares pelo seu silêncio. Hipocrisias e o assédio a ser usado como arma de arremesso da qual a defesa também pode ser problemática em realidades em que é criminalizada.
O nosso problema, evidentemente, está no facto de o assédio, que o é em todos os países minimamente desenvolvidos e que entendem ser obrigação pública a protecção da idoneidade dos mais vulneráveis e percebem o impacto negativo do assédio no trabalho e na produtividade das empresas, não ser crime tipificado em Angola. E agora pergunto eu: o que explica que o legislador e a prole de fazedores de leis tão desenvolvida que temos (leis para tudo e mais alguma coisa não nos faltam apesar de faltar a fiscalização da observância das mesmas) não se tenha debruçado sobre a problemática do assédio sexual? O que explica que o aborto seja crime e o assédio sexual não? Será que a transversalidade deste crime (que apesar de não estar previsto na lei não deixa de ser um crime) não isenta nem mesmo esta classe e trata-se aqui de um caso de não atirar pedras quando se tem telhados de vidro? É que não é por acaso que a UNTA, na voz da presidente do seu Comité da Mulher Sindicalizada, Maria Fernanda, aponta a administração pública como campeã de casos de assédio.
Mais do que de criminalização, que sabemos que mesmo que se torne lei não vai resolver, porque o maior problema é mesmo a falta de denúncias, é preciso sensibilização para inverter esta cultura predatória tão comum e tão institucionalizada. É preciso que trabalhadores, alunos e demais vítimas costumeiras de assédio conheçam os seus direitos e o que devem fazer para os reclamar. Esta consciencialização é responsabilidade das instituições públicas e este é um passo essencial para melhorar a qualidade dos recursos humanos quer de chefias quer de funcionários e com ela o ambiente de trabalho e a produtividade nacional. Esperemos que seja dado.