E agora pergunto eu...

Governar quando se quer agradar a governados neste país deve ser um exercício absolutamente extenuante... E cada vez surpreende menos porque é que José Eduardo dos Santos adoptou aquele estilo de quem não se rala nada com a opinião pública, de quem não presta contas, não explica decisões, enfim, de quem está acima das nuvens e distante por escolha própria. É que, não só a opinião pública tem opinião sobre absolutamente tudo, e cada vez mais graças às redes sociais, coisa com que o governo anterior teve a sorte de lidar menos anos, como, pior do que ter opinião sobre tudo, é que nunca está satisfeita, qual criança mimada e caprichosa, que se queixa do que tem e do que não tem constantemente. Faz criticam, não faz criticam, avança criticam, recua criticam, é impossível acompanhar as exigências.

O PR recuou na decisão da construção da clínica dentária milionária e canalizou a verba de cerca de cinco milhões de USD, para o combate à malária. Uma decisão acertada porque a málaria é uma prioridade pública.

É verdade que o PR provavelmente gasta essa verba em duas ou três saídas ao exterior se tiver de ir tratar os dentes fora, e, e agora pergunto eu querido leitor, se já imaginou que tipo de decisões de Estado podem vir por aí se o chefe as tomar com dor de dentes? Pergunto-me se nos pode este recuo sair bem mais caro? Mas para todos os efeitos o chefe ouviu a opinião pública e recuou e a decisão de recuo foi acertada.

Há críticas claro, umas que o acusam de governar ao sabor das redes sociais, outras que o acusam de incapacidade de ver por si que uma clínica dentária para a presidência para além de não ser um bem público, certamente não está no topo do mar de prioridades de que temos. Mas o presidente ouve a opinião pública, age de acordo em muitos casos e, isso é bastante mais do que tivemos em várias décadas, em que a opinião de governados não era tida nem achada. Podia ter levado a dele avante e recuou, esteve bem, como esteve bem no recuo do projecto do Bairro dos Ministérios que era outro sorvedouro de dinheiro para servir governantes em vez de governados que precisam mais, numa altura em que não temos dinheiro para o luxo na miséria a que andamos acostumados.

O PR visivelmente esforça-se por estreitar a distância entre governo e opinião pública e com isso dá um exemplo que a sua entourage tem manifesta dificuldade, talvez por falta de hábito, de acompanhar.

Na semana passada correu um áudio de um governador furioso a desancar num cidadão que se atreveu a perguntar o que fez pela cidade que governa. “Quem é você para questionar o meu trabalho” perguntava o governador de Malange, sendo que o governador de Benguela também já foi gravado numa fúria semelhante. Podiam ter aproveitado essas oportunidades para de facto mostrar trabalho aos cépticos, para enunciar, elucidar o público e esclarecer, mas a falta de hábito de prestação de contas e essa distância a que governantes se habituaram a estar de governados, e que os lança em fúrias assim que governados tentam chegar perto, falou mais alto. A ministra da saúde diz-se ofendida com perguntas corriqueiras de jornalistas e quase lhes lança pragas, o porta-voz do partido no governo diz que não há fome, o ministro de Estado, que a queda nas importações se deve ao aumento da produção interna, o ministro do interior explica a violência policial com a falta de chocolates e rebuçados para distribuir, e o governador do Banco Nacional de Angola explica a compra de divisas na rua, não com a falta e com as agruras que os bancos fazem todos passar para as receber, mas com falta de à vontade com gravatas...

Os exemplos da distância entre mundo dos governantes e governados são tão frequentes que muitas vezes o choque em que caem governantes quando é mostrada uma imagem do mundo miserável de alguns seus governados, torna-se insulto.

A televisão portuguesa SIC mostrou na semana passada uma reportagem dessas, chocante e insultuosa. Chocante por vários motivos, não só porque a qualidade jornalística da reportagem era questionável já que se mostravam imagens captadas por terceiros, sem confirmar a origem, porque o interlocutor se recusou a levar a SIC ao armazém onde dizia estarem amontoadas mais de 200 crianças em condições deploráveis, doentes e severamente desnutridas, como se podia ver algumas no vídeo. O governo envolveu-se movido talvez mais pela vergonha, assim como a sociedade civil movida pela urgência do risco de vida das crianças, e o caso revelou-se engodo porque não se tratavam de mais de 200 crianças, e porque as crianças que aparecem no vídeo foram recolhidas de vários pontos e ali colocadas para efeitos de dramatização. O efeito positivo imediato de toda a confusão foi que as que inspiravam mais cuidados foram levadas para o hospital.

A SIC, sem falar na asneira de passar para o ar imagens montadas para motivar donativos, meio que se retratou, esclarecendo a parte da vigarice descarada. Mas pergunto-me se há alguma dúvida de que existam muito mais de 200 crianças severamente malnutridas e doentes hoje, na mesma capital da construção de obras para atender governantes? Verdade, não estão juntas num barracão, mas será que o facto de estarem espalhadas as torna menos relevantes? Será que têm de se juntar num barracão para que olhem para elas? Porque é que não aproveitamos o mesmo expediente que foi usado tão eficientemente neste caso para as encontrar em 24h, para fazer um levantamento sério da malnutrição e doenças infantis que estão nos bairros de lata? Ou será que só quando os estrageiros mostram a nossa vergonha, é que nos envergonhamos dela?