Agora pergunto eu...

O disparo que matou Juliana Kafrique neste Março Mulher, que fez órfãos três filhos, o mais velho de sete anos e o mais novo bebé de meses que, desta vez, não acompanhou a mãe nas costas, levou à revolta popular, a vários feridos (senão mortos), a uma intervenção policial anti-motim com muitos mais tiros, à vandalização de vários carros que passavam e à queima da administração local.

Para quem perdeu uma mãe ou um pai, particularmente na infância, as palavras de condolências soam, por sentidas que sejam, a um vazio tão profundo e doloroso que tempo algum será capaz de preencher. No entanto, aqui ficam, humildes e impotentes, os sentimentos expressos, devidos aos filhos e familiares que a perderam.

Não é a primeira vez que as forças de seguranças e tornam um perigo público. Basta lembrar o caso do menino de 14 anos, Rufino António, que tentava defender a sua casa da demolição e que foi também abatido a tiro, pela mão de quem devia ter como primeiro norte defendê-lo enquanto cidadão. Basta lembrar que, num trabalho de cobertura desse caso, jornalistas desta casa, que lhe traz o seu NG, foram ameaçados e violentados pelos militares que guardavam a zona e que desprezam ostensivamente quaisquer direitos e liberdades civis. Basta lembrar o comportamento opressivo das forças da ordem quando se realizam manifestações que não sejam de apoio ao partido no poder, em que os agentes frequentemente se entendem no direito de atropelar o direito, esse sim constitucional, à manifestação, surrando manifestantes. Ou basta ainda lembrar que esta não é a primeira, nem a segunda, nem tão-pouco a terceira vez que uma zungueira perde a vida às mãos de polícias ou fiscais que as perseguem para lhes confiscar o ganha-pão. Mas e agora pergunto eu: para onde é que estes fiscais e polícias levam os bens confiscados a essas ‘perigosas’ zungueiras que são tão frequentemente alvo da acção policial? Sendo a resposta algo óbvia, para onde raio seria suposto levarem esses bens normalmente alimentares e, por isso, perecíveis que lhes são arrancados das mãos? Porque carga de água sequer é permitido o dito confisco que não fora a presença de uma farda, nada teria de diferente de um roubo sujo a trabalhadoras indefesas, vulneráveis, que apenas tentam sustentar a sua família? Como é possível que os nossos digníssimos dirigentes ainda não se tenham apercebido que permitir e encorajar, através de operações isto e aquilo, que polícias levem a cabo acções cujo alvo não são criminosos, mas gente claramente trabalhadora, pobre e indefesa que só faz tentar sobreviver e dar de comer aos filhos, é nada menos do que também criminoso e altamente irresponsável?

Não sendo este, desta mãe assassinada, caso isolado, essa maldita metamorfose das forças de segurança para o exacto oposto é um tamanho ‘calcanhar de Aquiles’ para o novo paradigma reformista e para os que compreendem a responsabilidade pública das instituições de segurança que dirigem e que não querem a farda que envergam conspurcada pela incompetência, corrupção financeira e sobretudo de valores que lhes merece o desdém público generalizado. É visível um esforço no sentido de uma correcção, responsabilização e melhor comunicação que a polícia existe para proteger (como não me canso de lembrar). Mateus Rodrigues foi peremptório, e bem, quando disse que não tinha qualquer relevância o que a vendedora pudesse ter feito porque responder com força mortal seria sempre condenável. O polícia em causa foi preso. Vê-se o esforço e a vontade de alguns em fazer melhor e salvar a imagem das forças de segurança que essa sim bem precisa de uma ‘operação resgate’. A polícia é vista, cada vez mais, como um problema do que como uma solução, é merecedora de pouca confiança e isso é problemático para a segurança nacional e para a estabilidade social.

Não sendo um caso isolado, este teve uma resposta diferente e com um nível de intensidade que já vimos em outros contextos serem suficientes para incendiar países inteiros. A falta de alternativas de sustento, a falta de comida que tem encarecido impiedosamente, a falta de emprego, que deixa muitos sem ocupação nas ruas, criam condições ideais para perturbações sociais graves e de consequências imprevisíveis. Dos múltiplos vídeos colocados a circular ‘online’ com imagens da violência que se seguiu ao assassinato da zungueira Juliana, em comum e visível está a revolta dos jovens contra a ‘ordem’. Vêem-se bandos de jovens a atirar pedras a uma polícia que responde com tiros.

Antes de ser prioridade resgatar a ordem, ordenar as ruas da cidade, esses jovens não deviam ter ocupação e as vendedoras alternativas de sustento? Carro à frente dos bois?

E andávamos preocupados em obter pedidos de desculpa pela actuação da polícia portuguesa no bairro da Jamaica…