Agora pergunto eu...

A opinião pública, regra geral, alimenta um fascínio especial por histórias de traição. As traições infligidas ou sofridas pelas grandes figuras históricas são indiscutivelmente dos episódios que mais atraem a curiosidade nos relatos do passado. Basta lembrar que um dos episódios mais recontados sobre a história da nossa rainha Nzinga é a do assassinato do irmão por temer precisamente a traição.

As traições e indiscrições da vida marital das celebridades fazem correr imensa tinta, enchem páginas e páginas de papel e de ‘bits’ online e suscitam um interesse tão intenso que atropela completamente a esfera do interesse público enquanto diferente da esfera privada a que toda a gente tem direito. Mais do que o sucesso de um ou de outro, a traição de Jay Z a Beyonce fez correr muita tinta. Antes disso, a traição de Bill Clinton com a estagiária e a cobertura mediática do assunto ditaram o começo do fim da sua promissora presidência do país mais poderoso do mundo. Entre nós, um exemplo acabado desse interesse mórbido, foi a comoção pública em torno da confissão da cantora Yola Semedo sobre a sua vida marital, como se algum choque existisse na descoberta de que as celebridades também traem. Esqueceu-se a cantante que entre o moralismo, e sobretudo o falso moralismo da nossa sociedade, e o machismo que tem dois pesos e duas medidas bem diferentes para traições de machos e de fêmeas, o mais indicado, caso se seja dado a indiscrições do género, é mesmo o silêncio.

Muito facilmente o público se esquece de que o carácter é definido não pelo que dizemos, mas pelo que fazemos quando ninguém está a ver, e de que o que dita a moral é melhor cumprido se começarmos por nós, pelas nossas próprias acções e por como influenciarmos quem nos rodeia.

Uma dissociação entre o que professamos e o que fazemos - curiosa, vi online de raspão esta semana -  dizia que os funcionários bajuladores dos chefes (uma subespécie de traição) são os que mais maltratam os seus empregados, principalmente os de casa, os mais vulneráveis. A verdade é que, melhor do que darmos palpites sobre as vidas e relações alheias, é cuidarmos o melhor possível das nossas, através da vigia da nossa própria conduta, querido leitor.

As traições políticas, essas, dominam e reinam, um pouco como as novelas faziam o horário nobre antigamente, completamente sobre todo e qualquer interesse público sobre a esfera política de qualquer país. Esta semana, o ex-advogado e braço direito de Donald Trump traiu-o, expondo o esforço do agora presidente dos EUA para encobrir a sua também traição marital. Não satisfeito, caracterizou o seu antigo ex-cliente e ex-amigo como “racista e burlão”, entre acusações mais graves que evocam mesmo o fantasma da traição à pátria, a pior das traições. O ‘vira-casaquismo’ é um fenómeno feio, mas muito na moda.

A propósito, as traições proliferas, entre entranhas do bucho do partido no poder nesta Angola que tem tantas prioridades à espera, só não fazem correr muita tinta porque obrigariam à assumpção da falta de espinha de demasiada ‘boa’ gente. No entanto, a traição no seio da coligação, que animou os jovens antes das eleições, parece entusiasmar, sobretudo os mplistas (que ainda na semana passada aqui descrevia como descaracterizadamente silenciosos). Quase como se a desdita alheia, o desabar da CASA, se de uma boia de salvação da quase inanição se tratasse. Como se procurassem os ‘camaradas’ desesperadamente forjar uma união perdida, através do festejo da expulsão de Abel Chivukuvuku da coligação que lhe coube criar.

E agora pergunto eu: qual é o motivo da celebração da traição alheia? Se é difícil justificar o interesse público nas indiscrições entre casais, a celebração por um partido (cujas traições se tornaram prato do dia), das traições entre outro quase partido, torna-se pedante e prova de falta do que fazer por si mesmo.

A perspectiva do fim da CASA não é senão mais um triste episódio que relembra a desonestidade, o ‘bilisguismo’ e a ‘falta de caractismo’ que já vem sendo marca registada dos políticos, aqui, num partido, noutro e em qualquer outra parte do mundo, e que devia ser mau para todos os políticos.

A continuada erosão do potencial da oposição nacional e da falta de equilíbrio governativo daí decorrente,categórica e inquestionavelmente, é má para o país.  A festa é por quê então?