‘Operação Resgate’ arrancou esta semana

“Sem as vendas, não somos ninguém”

Vendedores lembram que conseguem o sustento nas ruas e que vão ter a vida difícil. Especialistas criticam o Governo por não arranjar alternativas de emprego na hora de colocar em marcha a ‘Operação Resgate’. Associação dos vendedores lamenta não ter sido ouvida.

“Sem as vendas, não somos ninguém”
Mário Mujetes
Agentes da Polícia de cavalaria a expulsar zungueiras

Willy PiassaPorta- Voz do Banco Mundial em Angola

Quando se combate a informalidade, deve-se criar soluções para a formalidade.

A gentes a pé, de carro, a cavalo, ou com cães é o cenário que se observa nas ruas de Luanda, para combater a venda ambulante, sobretudo, nas zonas de São Paulo, Sambizanga e Congolenses. É a ‘Operação Resgate’ que se iniciou na terça-feira e está a deixar os vendedores ambulantes preocupados.

Maria José, residente em Viana, Luanda, vende há oito anos  e mostra-se preocupada com a ‘Operação Resgate’. “O futuro está ameaçado”, prevê, mas solicita um lugar para continuar com as suas vendas.  Queixa-se de que, na administração de Viana, o cartão de vendedora ambulante estava a ser tratado por cinco mil kwanzas, mas, nos últimos dias, subiu para os 10 mil. “O terreno de um metro quadrado nos mercados também custa 10 mil kwanzas, temos de escolher entre o cartão e a alimentação”.

Para pagar as propina dos cinco filhos, Maria José tem de juntar os valores do comércio com os da ‘kixikila’, um jogo realizado entre 50 vendedoras, em que cada uma contribui com uma determinada quantia, acordada entre as partes, e cada dia sai uma pessoa. No caso, contribui, por dia, com 500 kwanzas. Quando chega a vez dela, recebe 25 mil kwanzas, que adicionados ao valor inicial do negócio, “ajudam a pagar a escola das crianças”.

Isabel Manuel dos Santos considera “lamentável” como os vendedores vivem nos últimos dias, por não terem dinheiro para pagar os espaços nos mercados. Questiona-se entre o terreno e a alimentação o que deve fazer. “Para nos tirarem da rua, deviam organizar um lugar para irmos e não sairmos de pé para mão”.

O esposo desta vendedora está há cinco anos desempregado e o sustento da casa provém da zunga. Consegue pagar as propinas, no valor de 30 mil kwanzas, da filha que está na Faculdade de Engenharia, e dos outros dois que estão no ensino de base, com quatro mil cada um. Para conseguir suprir as necessidades, recorre à kixikila. “Sem isso, não somos ninguém”, afirma. A ajuda solidária tem feito com que as vendedoras consigam, além de pagar os estudos dos filhos, resolver outros problemas como a saúde, vestuário e fazer compras para casa.

De acordo com Isabel Manuel, o fim da venda ambulante poderá vir a agravar a condição de vida dos angolanos. “Haverá muita miséria e pobreza” e sugere que o Governo crie condições “dignas” para todos.

Na rua, há uma vendedora que se lembra da campanha do MPLA, que prometia criar 500 mil empregos. “Não nos deu emprego, vamos viver como?”, pergunta uma das zungueiras, prevendo “mais delinquência”.

Mariana Mbimbi tem dois filhos que já foram expulsos da escola por “não pagarem a propina de 4.500 kwanzas”. Com mais três crianças em casa, receia que, se deixar a zunga, “não poderá sustentar os filhos”.

Rosa David criou, educou e proporcionou a formação dos sete filhos com o dinheiro vindo da zunga. Paulina, uma das filhas, estudou com o dinheiro do comércio da mãe. Hoje, considera-a “uma guerreira”. A jovem, formada em Ciências da Comunicação, lembra-se das dificuldades por que passa quem depende das vendas. “Às vezes, havia desespero quando não se tinha dinheiro para o dia seguinte”, recorda.

Um ‘tiro nos pés’

O especialista no combate à pobreza e porta-voz do Banco Mundial em Angola, Willy Piassa, reconhece que o país há muito está “desorganizado” e que o Governo tem o direito de procurar “organizar as coisas”, mas considera que combater a venda ambulante pode ser “um tiro nos pés”. “Quando se combate a informalidade, deve-se criar soluções para a formalidade”, defende. “O Governo não pode combater a única fonte de sustento, sem criar condições dignas e uma medida como esta irá aumentar a pobreza”, alerta.

Willy Piassa lembra que cada pessoa que anda nas ruas a vender tem sob sua responsabilidade uma família, de sete ou mais pessoas, que dependem directamente dessas vendas. “Tem de se ter muito cuidado. Podia falar-se com as pessoas para se encontrar o melhor mecanismo para se solucionar esse problema”, sugere.

Com o mesmo pensamento, o sociólogo Nkanga Gomes lembra que o combate à venda informal “poderá contribuir para a desestruturação familiar, potencializa a delinquência, aumenta a prostituição”. Adverte que se pode desenvolver um “sentimento de revolta contra quem governa”. “Uma pessoa sente-se humilhada”, reforça, “porque precisa de sobreviver e satisfazer as necessidades básicas da família”. Nkanga Gomes sugere que se criem condições para os comerciantes se legalizarem.

O coordenador da Organização Não-Governamental (ONG) Omunga, José Patrocínio, manifesta-se contra a medida, sugerindo que o “resgate” comece nas instituições públicas, como a Polícia. “Se as zungueiras são desorganizadas, é porque o Estado está desorganizado”, defende.

Peso do informal

Em 2017, numa palestra promovida pelo Banco Nacional de Angola, o economista sénior do Fundo Monetário Internacional, Marcos Miguel, havia destacado que a economia informal tem um peso “significativo” no Produto Interno Bruto  com uma contribuição que ronda entre os 25 e os 65 por cento na criação de empregos. A “actividade informal serve como fonte de rendimento e de protecção, do lado positivo, no que tange à criação de postos de empregos e rendimentos a uma população activa em rápida expansão, que estaria, de outro modo, desempregada, dada a ausência de oportunidades suficientes no ramo formal”, elucidou.

De acordo com o Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN) 2018-2022, mais de 70 por cento das famílias angolanas vive com rendimentos obtidos através do comércio informal.

Mais de 30 mil lugares vazios

O governo de Luanda estima que haja, nos mercados, mais de 30 mil lugares por ocupar. O director do Comércio, Indústria e Recursos Minerais de Luanda, José Manuel Moreno, acusa as vendedoras de se “negarem a ocupar”. “O governo faz grandes investimentos nos mercados para melhor acomodar os vendedores, mas estes não colaboram, o que é errado”, critica.

O director do gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa da Comissão Administrativa de Luanda, Francisco Alexandre, lembra que, em todos os distritos, existem mercados vazios. “As milhares de senhoras que ficam a vender nas pedonais e em diversas ruas podem ir para estes locais”, afirma. Como exemplo, recorre à zona das ‘pedrinhas’, nos Congolenses, que tem dois quintais disponibilizados pela administração do Rangel para serem transformados em mercado. O governo provincial garante que o acesso aos locais e às bancadas é grátis.

O NG constatou que, na  zona das ‘pedrinhas’, as bancadas são muito apertadas e sem espaço de circulação. Há falta de parqueamento de viaturas. Junto ao muro de vedação, os agentes da fiscalização bloqueiam os pneus como sinal de transgressão.

O porta-voz da Polícia Nacional em Luanda, Mateus Rodrigues, tem realçado que a ‘Operação Resgate’ consiste no combate ao comércio informal, que potencia “o roubo e o furto de artigos, como telemóveis, acessórios de viaturas, televisores, botijas de gás, leitores de DVD e descodificadores”. 

A venda de medicamentos na via pública e em estabelecimentos comercias sem licença, centros não licenciados para a diversão nocturna, que comercializam bebidas alcoólicas nos espaços públicos e fomentam a violência e a prostituição são também alvos.

A associação dos Vendedores Ambulantes de Luanda (AVAL) estima que a proibição vá atingir milhares de angolanos. A organização, que congrega 3.700 membros, salienta que essas pessoas têm como única fonte de sustento a venda ambulante. A organização “não concorda que se possa acabar com a venda ambulante porque o país não tem emprego”, explica o presidente José Cassoma. De acordo com o responsável, os mercados, construídos em 2013, foram erguidos “sem” consultar os beneficiários e “não estão vazios”. “Constroem-se mercados sem antes consultar os vendedores e ainda há um hábito de as pessoas comprarem em locais mais próximos, porque nos mercados distantes o vendedor vai e não há clientes”, aponta.

 

 

 

 

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