“Tens de estudar Advogacia”

Poucos da família, infelizmente, tiveram pouca sorte. Se era, de facto, sorte, e pouca, de que careciam os Caunda, pois, nenhum deles conseguiu tornar-se naquilo que é o actual desejo de Mimi: “ser advogada”.

O pai, ainda muito cedo, não pôde continuar a ‘afiar o lápis’ por muito mais tempo porque o status quo de há 30 anos não lhe permitiu fazê-lo. A mãe, pelos mesmos motivos, optou pelo bombó com jinguba à porta de casa para garantir alguma alegria aos filhos que órfãos se tornaram.

Mas essa realidade de ‘menos um’ na família, menos o cabeça por sinal, não travou a vontade de Mimi e seus irmãos de ir à escola, às aulas de explicação do professor Morais, que dos alunos recebia apenas carinho e muito boas notas. Foi nas aulas de explicação do professor Morais em que Mimi aprendeu de cor a tabuada dos 11 e dos 12. Aprendeu e ensinou aos colegas a técnica dos ‘noves fora’, decorou ‘A vida na comuna I e II’, ‘Oriana e o peixe’, O sonho do Pedro’, entre outros textos, porque acontecesse o que acontecesse, estudar ainda era um dever revolucionário.

E Mimi queria fazer e viver a revolução estudando a sério, destacando-se sempre com as melhores notas, participações, com muitas questões, dúvidas e melhor caligrafia. O irmão, Zé-Piqueno, xará do avô, pai do seu falecido pai, queria ser arquitecto para construir uma casa “bem grande” para a mãe e os irmãos.

Tudo ficou mesmo só pelo sonho. A matemática do professor serviu apenas para ajudar a mãe nas contas do bombó e os desenhos de Zé-Piqueno para pichar paredes e tatuar. “Não consegui entrar no MACARENCO para fazer Construção Civil”, reclama, tentando justificar o seu acto de vandalismo.

Aos 37 anos, Mimi, hoje com cinco filhos, espera, com a experiência do bombó da mãe, dar-lhes o que não pôde receber. Espera que a sua filha mais velha faça o que ela sempre quis fazer. “Tens de estudar advogacia para poderes recuperar a pensão do vosso pai, ouviste”, implora a mãe Mimi.

Para a menina, que já atingiu a puberdade, estudar Direito num mundo torto como o nosso é muito difícil. Por isso é que até a própria palavra foi corrompida.

Embora a palavra 'advogado' seja escrita com ‘g’, a especialidade (o curso) é escrita com ‘c’ ‘advocacia’, pois ocorreu o processo de ‘sonorização’, em que a consoante surda, neste caso [k], representada pela letra ‘c’, é transformada em sonora [g]. Este processo ocorreu também em ‘amicu’˃‘amigo’, ‘aqua’˃’água’, etc.