Polícia reconhece falhas e anuncia medidas duras

Morte de uma zungueira revolta o povo

Revolta, tumultos e indignação dos residentes do bairro Rocha Pinto, em Luanda, e nas redes sociais foram as respostas à morte de Juliana Kafrique, às mãos de um agente. A Polícia Nacional admite ter havido falhas. O autor do disparo foi detido e os oficiais superiores despromovidos

Morte de uma zungueira revolta o povo
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A morte de Juliana Kafrique, de 29 anos, pelas mãos de um polícia, no bairro ‘Rocha Pinto’, em Luanda, provocou uma rara onda de indignação, que resultou em confrontos com a polícia, com a destruição do edifício da administração do bairro Prenda e a vandalização de carros, incluindo os da Polícia Nacional.

A jovem, zungueira, foi interpelada numa das pracinhas do bairro, perto do campo do Interclube, por polícias. De imediato, houve um desentendimento com os agentes que aí se encontravam para impedir que as senhoras pudessem vender. Neste desentendimento, um dos agentes sacou da arma e fez um disparo à queima-roupa, perfurando a bochecha esquerda de Juliana Kafrique, causando a morte imediata, mas “em circunstâncias ainda por esclarecer”, comunicou o comando da Polícia Nacional, quase 24 horas depois.

Juliana Kafrique era mãe de três filhos, de sete e dois anos e um de seis meses. Logo a seguir ao primeiro disparo, nasceu uma onda de revolta que transformou parte da avenida ‘21 de Janeiro’ num caos, envolvendo moradores.

O tumulto durou mais de três horas, entre a polícia e a população, o que obrigou à mobilização de dois órgãos especiais da Polícia de Intervenção Rápida (PIR), as Unidades Anti-Distúrbios (UAD) e a Anti-terror (UAT), que, usando gás lacrimogéneo dispersaram os revoltosos. De imediato, as redes sociais ‘incendiaram-se’ com a indignação (ver caixa) e com a proliferação de fotos com carros a serem queimados e chamas visíveis a vários quilómetros.

O Comando da Polícia Nacional em Luanda, em comunicado, reconhece que a situação terá sido originada “por um disparo de arma de fogo, realizado por um agente da polícia, que, entretanto, foi detido. Simultaneamente, foram despromovidos, no dia a seguir, o comandante de esquadra e os chefes da equipa. A polícia admitia ontem que existiram “fortes indícios de inobservância dos princípios de actuação policial e excesso de uso da força”. Também não foi possível, por parte dos agentes no terreno, socorrer a vítima após o incidente”, lê-se no comunicado, assinado pelo intendente Mateus Rodrigues.

“A consumação da morte da vítima provocou um sentimento de “revolta no seio da população que veio a gerar acções violentas contra as forças da ordem. A revolta da população foi produzindo actos de alteração à ordem e tranquilidade públicas, como vandalismo, resistência, arruaças, desobediência, danos aos bens públicos e privados, bem como outros ilícitos, o que levou ao recurso de forças especiais para a reposição da ordem pública”, esclarece ainda o comunicado.

Nos confrontos, garante a polícia, três agentes ficaram feridos. O presidente da associação dos Vendedores Ambulantes de Angola, José Cassoma, anunciou a intenção de abrir um processo-crime contra a Polícia Nacional, “no sentido de responsabilizar os autores do crime e para evitar, no futuro, que situações do género aconteçam”.

A arder nas redes sociais

Apesar do comunicado, dos lamentos e das medidas ali expressos pela Polícia, a indignação passou para as redes sociais, em que muita gente não hesitou em criticar, com textos e com imagens, o uso da força e a acção policial, quenão hesitarem. Juristas, jornalistas, políticos e actores mostraram em diversas publicações o seu “descontentamento”.

Sousa Jamba, jornalista e escritor

“Não será que o polícia disparou contra a senhora Juliana porque existe uma cultura na sua instituição que diaboliza as zungueiras? Se sentarmos para analisar a fenomenologia do acto do disparo, não veremos aqui uma insegurança profunda e alienação por parte do polícia? Em termos sociais, a Dona Juliana deveria estar muito próxima do polícia que disparou.”

Eva Rap Diva, cantora

“Honestamente, acho que não foi só a polícia que a matou, fomos todos nós. Matamos porque nada fazemos em relação ao facto desde sempre sabermos como as zungueiras são tratadas, vivemos indiferentes, matamos porque sabemos em que condições a polícia trabalha. Segurança, saúde educação com má qualidade num país matam! Então, matamos porque temos noção do número de pessoas que morrem todos os dias no nosso país por causa da nossa indiferença em relação a isso!”

Tchizé dos Santos, deputada

“Nada justifica disparar contra uma mãe de família desarmada. Que ponhamos todos a mão no coração e passemos a priorizar o que é de facto mais urgente, que é arranjar soluções para que estas mães tenham como sustentar os filhos sem correr riscos de vida, num país onde os índices de desemprego subiram vertiginosamente no último ano, pois uma casa não se constrói pelo tecto. Na altura do incidente denominado ‘caso Rufino’ em que foi baleado um jovem de 14 anos, pedi a palavra no Parlamento e disse que as forças de defesa e segurança fazem um grande trabalho e merecem o nosso respeito, porém, apelava que fosse ministrada formação e campanhas de sensibilização para que os efectivos passassem a lidar de forma diferente com as populações civis, valorizando e respeitando a vida e a integridade física, na sua acção de manutenção da ordem pública.”

Ismael Mateus, jornalista e conselheiro da República

“A revolta popular de terça-feira é um claro aviso à governação: estamos fartos de ver mulheres zungueiras que lutam para alimentar as suas famílias a serem mortas por ‘dá cá esta palha’. Não basta prometer. É preciso reprimir seriamente quem assassina civis indefesos. É preciso também ter autoridade para que a autoridade seja respeitada. Se o agente da polícia pede ‘gasosa’ e ‘matabicho’ ou se se deixa insultar e ameaçar, depois não tem moral para exigir autoridade. Muito menos para erguer a arma.”

José Cassoma, presidente da associação dos Vendedores Ambulantes de Angola

“Não é a primeira vez que vemos a morte de uma zungueira por parte da Polícia Nacional. Os agentes não têm sido pedagógicos. Nós, associação, vamos abrir um processo-crime contra a Polícia Nacional, no sentido de responsabilizar os autores do crime e para evitarmos, no futuro, que situações do género aconteçam. A organização, como defensora das zungueiras, terá de exigir às autoridades um julgamento público dos agentes da Polícia, tal como estamos a ver noutros casos.”

Mihaela Webba, deputada

É muita dor, sobretudo por estar numa condição de impotência. Para qualquer patriota, a dor de ver partir mais uma angolana inocente, em pleno tempo de paz, é inexplicável.

 

 

 

 

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