Violência contra a mulher tende a subir

Um semestre violento em casa

No primeiro semestre deste ano, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) registou 114 homicídios resultantes de violência doméstica. Sem especificar os géneros, aquela instituição garante que as mulheres são as maiores vítimas. No ano passado, o país registou mais de sete mil casos de violência doméstica.

Um semestre violento em casa
Conceição Nhanga

Conceição NhangaChefe do departamento de combate à violência doméstica do SIC

Os dados podem não espelhar a real dimensão do problema. São os números que chegam ao SIC porque há maior denúncia.

O número de mortes na sequência da violência doméstica tem vindo a crescer nos últimos tempos. Dados do Serviço de Investigação Criminal (SIC) mostram que, no ano passado, a violência doméstica fez 142 vítimas mortais. Até ao primeiro semestre deste ano, portanto, em apenas seis meses, os números disparam: 114 casos. As mulheres são as principais vítimas. O caso mais recente foi o de Carolina de Sousa, advogada, de 26 anos. Segundo a Angop, o marido confessou a autoria do crime, admitindo ter arremessado um bloco de cimento sobre a cabeça da esposa e, de seguida, ter colocado lixívia sobre o cadáver, antes de o esconder na fossa da própria casa. Uma suposta traição pode ter sido o motivo.

Pelo país, as queixas de violência doméstica aumentaram. No ano passado, o SIC atendeu mais de 1.500 casos, tendo detido 1335 pessoas. No primeiro semestre deste ano, foram quase 840 casos e 723 detidos. De acordo com Conceição Nhanga, chefe do Departamento de Combate à Violência Doméstica do SIC, os dados podem não espelhar a real dimensão do problema. “São os números que chegam ao SIC porque há maior denúncia”. Por sua vez, o Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher (Masfamu) registou, no ano passado, cerca de 6.100 queixas.  

Face aos números reportados e tendo em conta que muitos casos são silenciados pela família, Sizaltina Cutaia, do Ondjango Feminista, define a violência contra a mulher como “grave” e “preocupante”. Para a activista e feminista, é necessário que se olhe para a violência contra a mulher além da “domesticidade”. “Enquanto não sairmos da domesticidade, fazemos da violência um assunto de fórum privado ou familiar”, afirma ao justificar que é um “assunto de Estado por violar direitos humanos”. E que não se pode olhar para a morte de mulheres pelos parceiros como “normal”. “Isso mostra que não estamos bem”, lamenta a activista, que alerta para a necessidade de as famílias apoiarem mais as mulheres. “Há muitas que morrem porque não têm o apoio das famílias. A filha diz “não posso mais com esse homem porque me bate”, mas a família diz: “Fica. Vai passar”. E muitas acabam mortas”.

Angola tem assinado e ratificado vários acordos internacionais, em que se compromete a promover e a garantir o respeito pelo direito das mulheres. “O Estado está comprometido com os protocolos e tratados apenas de forma formal, mas, do ponto de vista prático, ainda tem de caminhar muito”, adverte Sizaltina Cutaia, para quem os direitos das mulheres são questões sérias e ligadas ao desenvolvimento. “Temos políticas e legislação, mas a aplicação não se materializa. O compromisso e a seriedade do Estado não se realizam nem nas políticas públicas, nem na cabimentação para a realização destas políticas”. A activista afirma que, para o Estado, “é mais fácil apontar as perdas de valores morais como casos para o aumento da violência do que assumir a sua responsabilidade de criar uma sociedade justa, igualitária e equitativa”. Defensora acérrima dos direitos das mulheres, Sizaltina Cutaia apela aos homens a juntarem-se e falar sobre o machismo. “O machismo não faz só mal às mulheres. Faz mal às sociedades”, alerta.

Em Angola, mulheres e crianças são as maiores vítimas da violência. Dados do Inquérito de Indicadores Múltiplos de Saúde (IIMS), de 2015-2016, mostram que 32 por cento das mulheres é vítima de violência doméstica desde os 15 anos. E que oito por cento foi vítima de violência sexual em algum momento da vida e ainda que 34 por cento foi vítima de violência física ou sexual cometida pelo marido ou parceiro.

 

Lei sem força

A violência doméstica passou a ser considerada formalmente crime a partir de 2011. A Lei Contra a Violência Doméstica é constituída por um prefácio, com seis parágrafos e um dispositivo com 35 artigos inseridos em sete capítulos. Sanciona e responsabiliza quem atente contra a mulher grávida, menor, idoso e pessoa psicológica, física e economicamente vulneráveis e práticas tradicionais que firam a dignidade humana.

 

Um semestre violento em casa

Para Sizaltina Cutaia, a lei “carece de revisão”, por causa do âmbito da própria lei e a capacitação e formação dos técnicos que entram em contacto com as vítimas. “O Estado criou a lei, mas não investiu na capacitação dos técnicos. Não basta criar leis. É preciso a efectivação e, para isso, é preciso investir e levar o assunto a sério”, explica, exemplificando com casos de mulheres que são violadas sexualmente e não encontram tratamento nos centros por falta de medicamentos para profilaxia.

A activista crítica ainda as organizações femininas dos partidos. Para ela, as mesmas mantêm uma “estrutura patriarcal, sexista e que muito dificilmente conseguem sair das agendas partidárias”. “Infelizmente, existem para apoiar as estruturas do partido e não para desafiar a desigualdade estrutural da nossa sociedade.”

 

Casa, o lugar mais perigoso

A casa é “o lugar mais perigoso do mundo para uma mulher”, conclui a Organização das Nações Unidas (ONU) após um estudo que mostra que quase 60 por cento das mulheres assassinadas no mundo foram vítimas de familiares próximos ou companheiros. O documento foi divulgado pelo gabinete da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC) e mostra que, das 87 mil mulheres que foram mortas, quase 50 mil foram assassinadas em casa. As estatísticas mostram que cerca de seis mulheres são mortas em cada hora por alguém que elas conhecem.

Segundo a UNODC, a taxa global de mulheres vítimas de homicídio aumentou para 1,3 vítimas por 100 mil mulheres. A organização lamenta que não tenha sido atingido “nenhum progresso tangível” nestes últimos anos, “apesar das legislações e de programas desenvolvidos para erradicar a violência contra as mulheres”. E defende “a necessidade de uma prevenção da criminalidade e de uma justiça penal eficazes para enfrentar a violência contra as mulheres”, apelando para uma melhor articulação entre as forças de segurança e os órgãos de justiça, para que os agressores sejam devidamente punidos pelos actos cometidos.

 

Os Piores países

A Índia foi apontada como o país mais perigoso do mundo para as mulheres numa pesquisa da Thomson Reuters Foundation com cerca de 550 especialistas em temas femininos. A pesquisa estudou 193 países-membros da ONU, entre Março e Maio, em questões das mulheres no sistema de saúde, recursos económicos, práticas tradicionais, abuso sexual e não-sexual e tráfico humano. Na lista dos 10 países, entram o Afeganistão, Síria, Somália, Arábia Saudita, Paquistão, República Democrática do Congo, Iémen, Nigéria e os Estados Unidos da América, como a única nação ocidental em que as mulheres enfrentam problemas de violência sexual, incluindo violação, assédio, coerção e falta de acesso à justiça.

Custo da violência

Em 2017, a ONU estimou que o custo da violência contra as mulheres pode chegar a dois por cento do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, equivalente a mais de 1,5 mil milhões de dólares, aproximadamente a economia do Canadá.

 

- No Uganda, o custo anual com funcionárias/os que tratam mulheres vítimas de violência doméstica é de 1.2 milhões de dólares;

 

- O custo anual da violência contra as mulheres para a Justiça em Marrocos é de 6,7 milhões de dólares;

- Na Nova Guiné, empregadas do sector privado perdem 11 dias de trabalho ao ano como resultado da violência de género;

 

- 20 por cento das mulheres no Camboja, vítimas de violência doméstica, faltaram ao trabalho e os filhos, à escola.

 

- No Vietname, o custo directo da violência doméstica representa 21 por cento das despesas mensais das mulheres; e vítimas da violência doméstica ganham 35 por cento menos do que mulheres que não sofreram este tipo de violência.

- O custo anual da violência cometida por parceiros íntimos das mulheres é de 5,8 mil milhões de dólares nos EUA e de 1,6 mil milhões de dólares no Canadá.

 

- Em Inglaterra e País de Gales, o custo da violência doméstica soma 32,9 mil milhões de dólares.

 

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