Viriato da Cruz agraciado com a mais importante distinção do Estado

Um prémio com sabor a redenção

O escritor e nacionalista Viriato da Cruz foi distinguido com o Prémio Nacional de Cultura e Artes, nove anos depois de uma “ordem superior” lhe ter ‘roubado’ o galardão. Entre académicos, há quem fale em “reposição da justiça”, enquanto outros elogiam o político “convicto” que “renunciou a vida pessoal para se dedicar a Angola”. O NG visitou a filha e a viúva, que recordam o poeta e político, fundador do MPLA, como um homem “bem-humorado” e que “parecia fogo”.

Um prémio com sabor a redenção
Manuel Tomás
Família de Viriato da Cruz
Pepetela

PepetelaEscritor

Viriato da cruz é um dos grandes refundador, da literatura angolana

A conteceu na semana passada, mas podia ter sido em 2009, se o “gabinete das ordens superiores” não tivesse “impedido” o júri do Prémio Nacional de Cultura e Artes de levar adiante a consagração de Viriato da Cruz na categoria de literatura, acabando por ser distinguido o actual ministro da Comunicação Social, João Melo. Por isso, nove anos depois, é com sentimento de “reposição da justiça” que Amélia da Lomba celebra a premiação do poeta e nacionalista que ajudou a fundar o MPLA. “Angola começa a dar indícios de reconciliação com a sua história, mostrando que o que cada um produz vale mais do que qualquer capricho político”, comenta a escritora, que, em 2009, estava na vice-presidência do júri que viu ‘barrada’ a intenção de premiar o autor de poemas como ‘Namoro’, em que um jovem que não sabia escrever sofre com o desejo de enviar uma carta para a amante que, ironicamente, não sabia ler.

Sublinhando que o poemário de Viriato da Cruz é “histórico e antropologicamente muito sério”, pois “mergulha profundamente na nossa identidade”, Amélia da Lomba revela que, por se ter batido pela manutenção do nome de Viriato como vencedor da edição de 2009, teve ‘makas’ que lhe afectaram, inclusive, o percurso profissional. “Foi-me dito com clareza: “tem de arcar agora com as consequências”, como se eu fosse a criminosa-maior de um processo em que, simplesmente, visava dar o devido valor a um poeta que bem merecia”, recorda a escritora, cortando da seguinte forma a tentativa de obtenção de mais pormenores: “Prefiro não detalhar o que passei, porque não conheço, até hoje, o endereço do gabinete das ordens superiores.”

“Digno representante”

Na semana passada, para justificar a atribuição do prémio a Viriato da Cruz, o júri alegou que o autor “é um digno representante da cultura nacional que exalta com profundidade a identidade e os valores da angolanidade e manifesta a esperança de se reviverem os hábitos e costumes locais num processo apaixonado pela valorização da cultura e da nação angolana”. Pepetela, escritor e antigo guerrilheiro do MPLA, concorda com essa descrição. “É um dos grandes refundadores, ou talvez fundador, da literatura angolana”. Em declarações ao NG, o autor de ‘Geração da Utopia’ confirma que o prémio “só não aconteceu antes por razões políticas antigas, de que já ninguém se lembra”. Apelando a que o Estado “recupere” outras figuras da história da literatura nacional, como Mário António de Oliveira, Pepetela lamenta que sejam “poucos” os jovens conhecedores da dimensão destes homens.

Mas não são apenas militantes ou simpatizantes do partido no poder que se rendem ao talento do autor de ‘Makesu’. Por exemplo, o académico Nelson Pestana ‘Bonavena’, membro do Bloco Democrático (BD), partido que integra a CASA-CE, explica que “Viriato inaugura a literatura moderna e faz o casamento entre o local e o universal e, por isso, entre o tradicional e o moderno”, mas receia que a obra do autor seja “pouco” conhecida por alegadamente ter sido sempre “diabolizado”. “Por exemplo, toda a gente conhece Agostinho Neto, porque o poeta beneficiou dos favores do político. No Viriato é o contrário: o poeta foi prejudicado pelo político.”

A dirigir o Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola (UCAN), onde dá aulas no mestrado de Economia de Desenvolvimento, Nelson Pestana entende que Viriato da Cruz “não se resume à literatura”, pois foi “convictamente um dos maiores nacionalistas de Angola, renunciando à vida pessoal para se dedicar ao país”. “Foi teorizador do nacionalismo moderno revolucionário, marcando não apenas as organizações políticas angolanas. Amílcar Cabral, por exemplo, foi doutrinado por Viriato”, afirma o docente, que não tem dúvidas de que se trata de uma entidade cuja memória “nunca” se extinguirá.

“parecia fogo”

Num modesto apartamento de um dos prédios do centro de Luanda, vive Marília da Cruz, filha de Viriato da Cruz. Tem 55 anos, nasceu em Marrocos e é professora de História, no II ciclo, mas não costuma falar do pai aos alunos, até porque este praticamente não teve tempo para conversar com a filha sobre política, ao falecer quando Marília tinha apenas 10 anos, em 1973. Mas há um episódio que não lhe sai da cabeça. Já viviam na China. Tinha ela oito anos e o pai, ao folhear os “enormes jornais” que recebia na época, chama pela filha, questionando, enquanto apontava para uma fotografia: “Sabes quem é este senhor?” Como havia respondido negativamente, o pai explicou-lhe, com algum orgulho, mexendo a cabeça, em sinal de aprovação: “Este é Agostinho Neto, presidente do MPLA.”

A mãe, Maria Eugénia da Cruz, nasceu no Moxico, há 90 anos, mas conserva uma lucidez que contrasta com a fraqueza da voz. Por exemplo, ainda se lembra de como perdeu o primeiro filho, dias depois do parto, devido a “debilidades” dos serviços médicos da Guiné-Conacri, país em que a família estava exilada, antes de rumar para Marrocos, onde viria a nascer Marília da Cruz, em Março de 1963.

A ida da família para a China, recordam mãe e filha, ocorreu em Junho de 1966, depois de o poeta já lá se ter fixado, meses antes. Nas ‘terras de Mao Zedong’, embora haja quem afirme que o nacionalista teria sido vítima de racismo, a família desmente tal versão. “Houve divergências normais que ocorrem até mesmo com pessoas da mesma cor”, explica a viúva de Viriato da Cruz, que se lembra do marido como um homem com “um interior que parecia fogo”. “Tudo era dirigido para a sua Angola, mas em conexão com o mundo inteiro. Era uma pessoa que não tinha limites, tanta era a sua visão.”

Sobre a morte do pai e marido, um dos ideólogos do MPLA, as duas recordam-se apenas, com visível tristeza, que foi por “enfarto do miocárdio”, motivado provavelmente pelo gosto pelo cigarro, que transformava a casa “numa imensa nuvem de fumaça”, como descreve a viúva, que não deixa de realçar, entretanto, o “bom humor” do marido, que chegava a imitar o gesto do líder chinês, fazendo rir a família. Em Dezembro de 1974, um ano após a morte de Viriato da Cruz, a esposa e a filha vêm para Angola, onde se surpreenderam com comentários “agressivos” acerca do nacionalista, difundidos em comícios, em que destacadas figuras do MPLA o acusavam de ser “revisionista e fraccionista”.

 O corpo de Viriato só seria transladado de Beijing para Angola 17 anos depois da sua morte, em Dezembro de 1990, por iniciativa da família, com auxílio da embaixada da China em Angola. “Os chineses já nos haviam dito que, quando quiséssemos, era só solicitar que pagariam tudo”, explicam as senhoras, que se lembram de ter visto Lúcio Lara, António Jacinto e outros membros do partido no ‘Alto das Cruzes’, durante o funeral, embora neguem que tenham recebido qualquer apoio do Governo. “Só duas vezes, fomos à sede do MPLA: uma para falar com Ju Martins, que nos convocou para conversarmos; e outra por iniciativa de Dino Matross”, recorda a filha, sublinhando que ambos os encontros ocorreram há mais de 10 anos.

Embora confirmem que o nacionalista escrevia e lia “muito”, Maria Eugénia e Marília da Cruz não prevêem, para já, fazer qualquer compilação que resulte em livro. Por exemplo, revelam que o poeta, durante a permanência na China, evitava ao máximo trocar cartas com quem estivesse em Angola, para que os residentes no país não se ‘metessem em makas’ com a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) – um organismo colonial que repreendia violentamente todas as formas de oposição. Sobre a conquista do Prémio Nacional de Cultura e Artes, na categoria de literatura, a família mostra-se “bastante contente” e promete honrar a notificação do Ministério da Cultura, marcando presença, amanhã, na gala em que Viriato da Cruz será agraciado, a título póstumo, com a mais importante distinção do Estado.  

 

Na fundação do MPLA

Viriato Francisco Clemente da Cruz nasceu a 25 de Março de 1928, em Porto Amboim, Kwanza-Sul, e morreu em Junho de 1973, na China. Escritor, criou o Partido Comunista de Angola, foi um dos fundadores do MPLA e um dos mais importantes impulsionadores da poesia angolana nas décadas de 1940 e 1950, ajudando a criar o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (1948) e a Revista Mensagem (1951-1952).

Um prémio com sabor a redenção

Divergiu com a liderança de Agostinho Neto, na década de 1960, e saiu de Angola, em 1962, para nunca mais regressar.

Além de Viriato da Cruz, a edição de 2018 do prémio do Ministério da Cultura consagra Waldemar Bastos (na música), Fidel Reis (nas ciências sociais e humanas), António Dias dos Santos (artes visuais e plásticas), Misael Almeida (cinema e audiovisuais, a título póstumo), Jaka Jamba (menção honrosa, a título póstumo), Sakaneno João de Deus (dança), grupo Ngwizane Txikane (teatro), programa televisivo da Huíla ‘Tudo e Mais’ (jornalismo cultural) e os Bakamas (festividades culturais populares). 

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