Activistas e especialistas preocupados

Angola e Portugal a braços com o racismo

Choveram críticas por causa de um alegado acto racista num restaurante em Luanda. O que acendeu a polémica sobre um tema considerado quente: o racismo. Especialistas angolanos garantem que ele é visível em toda a sociedade e exigem medidas. Em Portugal, um grupo de mulheres negras criou um instituto de defesa dos direitos das mulheres negras, que, segundo elas, são subjugadas e remetidas em último lugar.

Angola e Portugal a braços com o racismo
Joacine Katar Moreira

Joacine Katar Moreirapresidente da Inmune

Recentemente, em Portugal, foi criado o Instituto da Mulher Negra (Inmune), que nasce da necessidade de tomada de posições públicas e políticas das mulheres negras face a “um ambiente institucional que as continua a limitar.

Nas últimas semanas, o relato de um homem que garante ter sido vítima de racismo num dos restaurantes de Luanda acendeu o debate. O desabafo, feito nas redes sociais, tornou-se viral, obrigando a que o restaurante ‘Café Del Mar’, onde tudo terá acontecido, emitisse um comunicado a desmentir, justificando ter expulsado o jovem por estar trajado de maneira “desadequada e inaceitável” (calças sujas, camisola rasgada, chinelos em péssimas condições e aparente falta de higiene). A situação levou a que um grupo de jovens organizasse uma marcha de repúdio. O caso vai ser resolvido em tribunal.

Várias vozes fizeram-se ouvir para defender a necessidade urgente de se falar abertamente sobre o racismo. Em Angola, o antropólogo Manuel Correia assegura ser “lactente” o racismo, sobretudo de estrangeiros residentes e que olham para o negro como um “ser desprezível”. “O racismo tem duas vertentes, a antropológica, em que as pessoas o carregam por natureza e a de conveniência, como a que aconteceu no colonialismo imprimido pelo europeu em África”, explica.

Por sua vez, o activista e assumido afrocrata Isidro Fortunado entende que o racismo “persiste” devido à falta de uma “ruptura epistemológica” ou à “descolonização do Estado”, após as independências. “As políticas raciais e os privilégios estruturados na base da raça mantiveram-se inalterados”. “O racismo manifesta-se, muitas vezes, na discriminação alimentada por um ego cultural europeizado dos assimilados que herdaram o poder colonial” Isidro Fortunato acusa as instituições de serem “promotoras do racismo”. “Infelizmente, vivemos num Estado de matriz colonial que produz uma consciência colonial, em que os privilégios giravam em torno da cor, sendo brancos e ‘mulatos’ privilegiados e os negros a base da pirâmide”.

Manuel Correia concorda com Isidro Fortunato de que as instituições são promotoras, mas que, devido à “sofisticação, quase não se nota”. O académico e antigo vice-reitor da Universidade Piaget presenciou recentemente episódios numa das empresas petrolíferas na Lunda-Norte. “As pessoas que trabalham nas minas, de cor negra, têm de almoçar num sítio e os brancos no outro. Mas depois todos vão trabalhar no mesmo sítio”. Em muitas situações, estende-se até às condições salariais que é uma das imagens do racismo ideológico. “Por alguns serem negros são tidos como inferiores e o salário vai de acordo com esta condição. É um branco quem manda”, lamenta. “Existe essa discriminação racial e só não veio à tona porque não temos um governo que olhe para estas questões”. “O que se verifica é que os estrangeiros, nomeadamente europeus, vêm para Angola não fazem o esforço para assimilar a cultura e querem continuar a impor a sua cultura porque o negro angolano ainda é tido como inferior”, reforça. Para que se reverta o quadro, defende que caberia ao Governo implementar medidas. “Conheço angolanos que ficaram fechados durante uma semana numa casa de brancos por serem negros a reivindicar o salário e o Governo e a polícia não vêem nada disso. Não é admissível que num país maioritariamente negro haja sintomas de racismo, porque o angolano originalmente não é racista, pode até ser tribalista.”

Manuel Correia encontra um complexo imposto pelos colonos que queriam que se esquecesse a cultura, tradições e línguas. “Como levou séculos na inferiorização da nossa cultura e do que fazemos, o angolano foi criando um complexo de inferioridade diante do branco, mas nunca criou racismo contra o branco. E os europeus aproveitam-se deste complexo para dominar o negro e isto verifica-se na política e na igreja”. Nas instituições, o académico explica que, muitas vezes, a opção de escolha acaba por cair nos expatriados. “Um angolano estudado que procura trabalho ainda tem de levar muitas voltas. Mas quando vem um ‘carvoeiro’ europeu com uma licenciatura ou nem isso e vai a mesmo sítio apresentar o currículo, no dia seguinte já está empregado. E isto é o complexo de inferioridade, em que se acha que tudo o que o branco diz ou fala é superior e isso prejudica-nos”. Acusa ainda a Igreja Católica. “Não se encontra um angolano que vá para o Vaticano ou Portugal e é nomeado bispo. Mas o branco quando vem em Angola trabalha uma dúzia de anos e é bispo. Significa que a Igreja Católica ainda é infantil”, defende, propondo leis sobre o racismo. Por sua vez, Isidro Fortunato entende “ser urgente que se defina angolano como um conceito de raça” e que a melhor forma de lidar com o “racismo estrutural em Angola é a descolonização e a definição de raça em torno de uma ideia inclusiva de nação”.

 

“Portugal racista”

Recentemente, em Portugal, foi criado o Instituto da Mulher Negra (Inmune), que nasce da necessidade de tomada de posições públicas e políticas das mulheres negras face a “um ambiente institucional que as continua a limitar e que as mantém na base da pirâmide social”. O grupo quer combater a invisibilidade e a discriminação das mulheres negras na sociedade. Pretende promover a igualdade social e de género; valorizar a cultura africana; ter uma voz crítica e participativa na política e na sociedade; afirmar um feminismo negro; dialogar com as várias comunidades africanas em Portugal e o Estado; criar plataformas facilitadoras das necessidades na saúde, educação, empregabilidade e justiça. Pretende ainda combater activamente o racismo, xenofobia e as violências ligadas à orientação e identidades sexuais, doméstica e os estereótipos impostos pela sociedade.

A presidente do Inmune, Joacine Katar Moreira, ao NG, afirma acreditar que uma as formas de combater o racismo é “reconhecer que é um problema sério, criminalizá-lo e puni-lo severamente”. “As pessoas devem sentir-se inibidas de tecer comentários, promover ideias e ideologias e cometer actos racistas. E a par disto, formar, instruir e desconstruir falácias e mitos que suportam o racismo, como, por exemplo, a ideia de que existe ‘racismo inverso’, a ideia de que Portugal foi um bom colonizador, reescrever manuais escolares de História em que se continua a ler escravos como produtos comerciais e promover iniciativas como uma lei de quotas para as negras e negros nas diferentes instituições do Estado”, defende.

Natural da Guiné-Bissau, a feminista, activista negra e investigadora considera Portugal como um país “estruturalmente racista”, com um passado colonial que o comprova e com uma realidade que o denuncia. Admite que não tem como comprovar que foi ou que se sente vítima de racismo”, mas que ele se manifesta, muitas vezes, de “forma subtil”.

Maíra Zenum, outra activista, entende que o combate ao racismo precisa, urgentemente, de uma legislação que condiga com os crimes praticados e historicamente impunes. “Uma legislação que entenda que o racismo é real, actual e sistemático; e que afecta diariamente as comunidades negras”. Enquanto, Neusa Trovoada considera que o que subjuga os negros a um lugar de inferioridade é a violência acarretada pelo racismo e as desigualdades sociais, que ainda hoje, são fruto dum passado colonial e esclavagista. “Colocar o negro no centro do debate na sociedade, seja pela criação de movimentos activistas e de dias de celebração da cultura negra, não é menorizar o seu valor social, mas sim, repor uma justiça histórica”, entende.

Karin Gomes, outra integrante do Inmune, afirma que as principais dificuldades que as mulheres negras em Portugal enfrentam prendem-se com as questões sociais, económicas, de visibilidade social, acesso à educação, à saúde física e psicológica, o respeito a sua vida e ao seu corpo, as problemáticas referente às famílias maioritariamente monoparentais e matriarcais. A activista defende que para se ultrapassar os problemas é preciso que se lute por um mundo mais igualitário, promovendo maior justiça social. E acredita que para se ultrapasse estas barreiras é preciso levar-se em conta que as mulheres negras precisam de recuperar o direito à sua história, o acesso à educação e formação de qualidade, o direito de escolha em relação à maternidade e que o “tomar conta” não seja algo colocado no feminino; que os homens negros exerçam a sua função de pai e companheiro que lhes couber”, acrescenta.

 

“Uma luta diária”

Em 2016, cerca de 22 associações enviaram uma carta ao Comité das Nações Unidas para a eliminação da discriminação racial, apresentando uma crítica severa ao Estado português, que não reconhecia a necessidade de haver políticas específicas para as comunidades negras. Solange Pinto lamenta que em pleno século 21 ainda ocorram situações como a discriminação racial. “É humilhante termos de passar por isso”. A  directora do departamento do Inmune≠ afirma que ser negra e mulher em Portugal “é sinónimo de luta diária”. Luta pela sobrevivência e luta pelo respeito. “É ser invisível. Só se lembram de nós quando pensam nos trabalhos domésticos”, lamenta. O Inmune defende a necessidade de haver reais transformações, denunciando o lugar subalternizado que as mulheres negras ocupam numa sociedade “extremamente racista”.

Por estes dias, 18 polícias estão a ser julgados por acusação de racismo, falsificação de autos e de agressões a jovens negros.

 

 

 

 

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