Aconteceu há dois dias atrás…

Professor Ferrão

Com o tempo, as palavras e expressões podem alterar, levando, às vezes, a reforçar o seu significado com outros recursos que a própria língua oferece

É o caso, por exemplo, de algumas redundâncias existentes no português e que são, nos nossos dias, perfeitamente justificáveis. Estamos a falar, como já referi aqui neste espaço, da palavra caligrafia que, na sua génese, significa ‘escrita bela’.

Muitos falantes da língua portuguesa sequer imaginam que, na originalidade, dizer de ‘tens caligrafia’ é igual a “a tens uma bela escrita”. O ‘esquecimento’ gradual de que ‘cali’, do grego, significa ‘lindo’ leva a que se aceitem como válidas as expressões como  «ele tem uma ‘belíssima caligrafia’»  ou «ele tem uma ‘péssima caligrafia’».

Poderá a redundância, hoje aceitável, de caligrafia ser usada para, por assim dizer, ‘perdoar’ quem, de modo repetitivo, recorra ao uso da expressão “aconteceu há dois dias atrás”?

Como sugere Carlos Moreno, este deve ser o momento de lembrar, a teoria do degrau: «se o meu vizinho, ao entrar no seu prédio, tropeça no degrau, podemos imaginar que ele esteja com algum problema de visão, ou de coordenação motora, ou coisa assim. No entanto, se um grande número de moradores tropeça no mesmo lugar, então é hora de examinar o degrau…»

Muitos são os angolanos que usam o “há dias atrás”. Até os grandes e renomados falantes usam essa construção. Deve haver algo que justifique esta recorrência. Não é uma situação grave do ponto de vista linguístico, pois há quem suspeite que o hábito de usar ‘atrás’ como apoio do verbo ‘haver’ tenha as suas raízes na língua falada. Porque, “enquanto na escrita a presença do “H” informa o leitor de que ali está o verbo ‘haver’, na fala, que é instantânea e sem replay, o ‘atrás’ é, muitas vezes, indispensável para que o ouvinte possa discernir, desde o início da frase, do que estamos a falar.

Na escrita, por sua vez, diz o co-fundador do portal Sua Língua, permanecem outras áreas de turbulência, principalmente quando usamos o pretérito imperfeito do indicativo, pois existe também um “há dois anos” que, por indicar o tempo continuado, não comporta o reforço do ‘atrás’.

Está certo que não cria o mesmo desconforto que nos criariam frases como “subi lá em cima”, ou “desci lá em baixo”. Ninguém pode ser levado à guilhotina por ter recorrido a um reforço, mas podemos evitar, sempre que possível, expressões redundantes. “Há dois dias atrás” é uma delas.