Carlos Burity, músico e compositor

“Para cantar, é preciso perceber a sociedade”.

Carlos Burity morreu hoje, aos 67 anos, vítima de uma paragem cardiovascular. Há três anos, quando se preparava para celebrar 45 anos de carreira e com dois espectáculos na agenda, foi entrevistado pelo Nova Gazeta. Confessava-se ser vaidoso, lamentava não ter dinheiro suficiente e assumia que sempre rejeitou cantar contra a situação política. A entrevista, na íntegra, é republicada hoje.

Lúcia  de Almeida Lúcia de Almeida | PIHIA RODRIGUES
“Para cantar, é preciso perceber a sociedade”.
D.R
Carlos Burity morreu em Luanda, aos 67 anos.

Queria poder ter mais estabilidade para poder transformar em fáceis os problemas da vida.

Começou a cantar muito novo. Como conseguiu ultrapassar essa fase e convencer a família de que era aquilo que queria?

Há coisas que nem eu sei explicar. Mas foi por insistência de minha parte. Era criança e não levava muito a sério o que eles falavam quando estivessem preocupados com o ‘barulho’. Se estivessem sentadom num lugar, mudava para outro. E depois ficava tudo bem.

Lembra-se da 1.ª vez que subiu ao palco?

Lembro-me. Estava com 14 anos, foi uma música polémica. Intitulada ‘Monami Zé’. Na altura, as pessoas não estavam preparadas para a música. Dei uma de atrevido e fui cantar em kimbundu. Foi numa festa de finalistas no Moxico, não fui bem aceite pelo público, ouvi alguns ‘fora!’, mas foi bom. Deu-me mais força.

Qual é a preocupação que tem para resultar em sucessos?

Honestamente, creio que muitas coisas acontecem sem eu saber. Acontecem com naturalidade, podemos talvez chamar dom. Apareço para cantar e depois as pessoas elogiam. Às vezes, noto que não fiz nenhum esforço. As coisas que tu não pensas muitas vezes acabam por fazer sucesso.

Dê um exemplo de uma música que foi feita na brincadeira e acabou num sucesso inesperado.

A maioria dos trabalhos que faço, como ‘Ilha de Luanda’, nunca pensei que fosse ser um sucesso, surgiu do nada. ‘Mana Zinha’ também. Fazemos, mas nunca com a ideia que isso vai ser sucesso. Há coisas que não têm explicação.

Como vê o semba hoje?

O semba está bem. Evoluiu um pouco. A intenção é enriquecer de acordo com a evolução dos tempos.

Está a preparar alguém para dar continuidade ao seu trabalho?

Nem penso nisso. Não estou a preparar ninguém. Não é que não queira. Dentro da minha família os que quiserem continuar são livres. Tenho um filho que, às vezes, fica a ‘gritar’ na sala, vou ouvindo só. Está na fase da adolescência, pode ser que depois não queira continuar. Mas é próprio da idade.

Há uma onda da nova geração a interpretar músicas em línguas nacionais…

É positivo. Vale mais tentar do que não fazer nada. A ideia é esta: alguém tem de fazer alguma coisa, não fazer nada é pior. Vai haver alguns erros, é normal, mas estamos aqui para ajudar.

E os músicos consultam?

Naturalmente, vão consultando. Agora é preciso saber se consultam pessoas certas ou erradas.

Tem sido consultado?

Não. Mas consulto quando quero fazer algumas músicas em línguas nacionais. Procuro outros indivíduos que entendam. Agora as pessoas estão desmotivadas. Mas sente-se que há uma vontade de se querer resgatar os nossos valores e as nossas origens.

Sente-se valorizado?

Essa é uma pergunta difícil de responder. Todos nós gostamos sempre de um pouco mais. Ninguém se sente totalmente valorizado. Podia ter um pouco mais, depois de mais de 40 anos de carreira, não vou dizer que já fiz tudo, mas o que tinha de fazer pela cultura angolana está à mostra. Poderei naturalmente fazer mais.

De que forma gostaria de ser mais reconhecido?

Tem três coisas que se gosta: saúde, educação para os filhos e dinheiro.

E o que falta?

Falta dinheiro. Esse é o problema da maioria. Tenho de ser honesto, não posso todos os dias contar tostões para pagar a escola dos filhos. Queria poder ter mais estabilidade para poder transformar em fáceis os problemas da vida. Queria ter uma reforma melhorada.

A UNAC tem salvaguardado os seus direitos?

A UNAC faz a parte deles. Dá reformas a alguns artistas, mas não é suficiente para viver. Tem de se fazer outras coisas para poder se manter.

Portanto, não vive só da música?

A minha sorte é que, à medida que fui ganhando algum dinheiro, criei alguns empreendimentos. Não tenho uma reforma que possa viver minimamente. Recebo por mês da UNAC cerca de 85 mil kwanzas. Vou viver assim?

 “Para cantar, é preciso perceber a sociedade”.

Vaidades

Acha-se vaidoso?

Não sei se sou vaidoso. Se não sou devia ser, porque a vaidade faz parte do ser humano. Todos devem ter vaidade saudável sem incomodar os outros de querer ter a roupa a combinar. Uma vaidade bonita.

Há quem diga que não sobe ao palco sem fato…

Depende do local. Se for uma hora cheia de sol, não vou de fato e gravata. Se for num local mais exigente, vou de fato para dizerem “esse gajo afinal também tem fato como nós, também é pessoa” (risos).

Já foi muito assediado?

Na verdade, quando era mais novo aconteceram muitas coisas. Quando fosse ao estrangeiro actuar, muitas vezes mandavam chamar “aquele moreninho ali”. Tinha algumas mulheres que simpatizavam comigo, colavam recados e números de telefone no bolso do casaco. Mas não ligava.

Porquê?

Primeiro, porque não conhecia e ficava com medo. Já que ninguém te defende tens de te proteger sozinho. Enquanto não aparecer alguém que chega ao pé de ti, tu não avanças, tens um receio natural que todos devem ter, é uma atitude normal.

Compõe todas as suas canções?

No princípio, escrevia algumas coisas. Mas depois tive mesmo de me socorrer a outros autores mais conhecedores a fim de ir buscar e de estar por dentro dos problemas do povo.

Que participações com outros músicos mais o marcaram?

Tenho várias, como com o Paulo Flores, Djeff Brown.

Esteve ausente dos palcos por causa dos problemas do coração?

Sim. Tinha de repousar. Estava com uma veia entupida por excesso de gordura que andei a exagerar.

Com oito discos, qual foi o que lhe deu mais prazer de fazer?

Todos tiveram uma época diferente, em todos álbuns tive a mesma preocupação. Não teve um mais fácil, nem mais difícil. Todos foram trabalhosos.

Já se sentiu privado de expressar alguma realidade sociopolítica nas músicas, antes e após a independência?

Isso já, há muitos anos. Quando gravei a música ‘Zé da Graxa’.

O que aconteceu?

Precisava de alguns discos e fui, na altura, à ‘Valentim de Carvalho’, para levantar alguns discos. Disseram-me que já não podia levantar nenhum disco porque estavam proibidos.

Hoje é mais fácil cantar a realidade de Angola?

Não posso dizer isso porque nunca cantei sobre os problemas políticos de Angola.

Porquê? Não lhe comovem?

Claro que comovem! Mas como cantor tens de saber te situar, não te podes insurgir. Podes cair no descrédito. Se queres realmente singrar como músico, tens de saber situar-te dentro da sociedade.

Já está a trabalhar num próximo disco?

Isso é segredo.

Não acha que o público está preocupado com a falta de músicas suas?

O meu disco entrou nessa fase da crise. A crise afectou-me logicamente!

Como surgiu o convite para o ‘Show do Mês’?

São pessoas que já têm trabalhado comigo. O Yuri Simão fez comigo os 35 anos de carreira, tem feito um bom trabalho. Estou a gostar. É natural que queira fazer os 45 anos de carreira também.

Que expectativas tem?

Vou esperar para ver. Nervosismo há sempre. Quem não fica nervoso não é responsável.

 

Discografia

1-Carolina    5- Massemba

2-Ilha de Luanda      6- Zuela o kidi

3-Wanga        7- Paxi-Iami

4-Ginginda       8- Malalanza

 

Prova do sucesso

Com o sucesso que carrega e com 45 anos de carreira, Carlos Burity colecciona prémios, diplomas de mérito e várias homenagens. Em 2002, venceu três categorias do ‘Top Rádio Luanda’: Produção Discográfica do Ano, Semba e Disco do Ano. Depois de três anos, recebeu o prémio ‘Preservação’ mais uma vez pelo ‘Top Rádio Luanda’. Em 2010, os prémios ‘Velha Geração’ e ‘Consagração’, pela Casablanca. Em 2011, foi considerado pela UNAC como sendo o ‘Pilar da Música’, em 2013 adquire o certificado de Mérito no ‘Muzonguê da Tradição’ e no mesmo ano foi homenageado pelo ‘Feskizomba Luanda’.

 

Perfil

Nome: Carlos Fernandes Burity Gaspar

Data de nascimento: 14 de Fevereiro de 1952

Naturalidade: Luanda (Sambizanga)

Estado civil: Solteiro

Filhos: 12

Prato favorito: Cabidela e muamba (acompanhada com uma taça de vinho tinto)

Artistas que admira: Yola Semedo, Anselmo Ralph, Matias Damásio, Yuri da Cunha, Eddy Tussa

Cor: Amarelo e verde

Clube desportivo: Sporting e Petro de Luanda

Pior defeito: Teimosia

 

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