Suzanete Costa, decana da Faculdade de Ciências da Universidade Agostinho Neto

“Os nossos trabalhos abordam os problemas que afectam a sociedade”

A decana da Faculdade de Ciências não esconde a frustração pela ausência das condições prometidas no ‘campus’ da Universidade Agostinho Neto. Em entrevista ao NG, Suzanete Costa, que cumpre o penúltimo ano de mandato, deseja que quem lhe suceder tenha “mais sorte” com as verbas. A responsável até admite ‘apertos’ nas condições, mas apoia a abertura do doutoramento em Geologia e afirma que inserir o português num dos nove cursos da faculdade seria uma “ratoeira”.

“Os nossos trabalhos abordam os problemas que afectam a sociedade”
Santos Samuesseca
Suzanete Costa,

Suzanete Costa, decana da Faculdade de Ciências da UAN

O menino da iniciação tem de ser habituado a ler e tem de se apostar na formação de formadores. E isso vai levar tempo, mas, com vontade, pode chegar-se lá.

É docente da Faculdade de Ciências da Universidade Agostinho Neto (FCUAN) há mais de 30 anos, mas leva apenas três no cargo de decana. Que diferenças nota?

Temos muito menos pessoal qualificado do que antes. Tínhamos funcionários de qualidade e, entre os novos substitutos, são raros os que têm formação e preparação de qualidade. Por exemplo, só com o secundário, um antigo funcionário fazia um documento sem erros, mas, agora, podemos ter um licenciado com dificuldades para elaborar um documento. Em termos de docência, fomos perdendo muitos professores. Quando cheguei, tínhamos 38 docentes a menos e, neste momento, estamos com uma baixa acima dos 40.

No próximo ano, o Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI) deverá realizar um concurso público para o ingresso de professores. De quantos a FCUAN precisa?

No mínimo, gostaríamos de ter, pelo menos, 50 professores. Só que há outro problema: haverá muitas candidaturas, mas isso não significa que virão as pessoas devidamente preparadas para ocupar os lugares. Também nos faltam técnicos de laboratório e muitos equipamentos já são antigos. Felizmente, temos empresas que nos apoiam e recebem os nossos finalistas para estágios. A renovação dos laboratórios tem sido uma guerra. O nosso sonho, e o que nos estava prometido, era que nos mudaríamos para o Campus Universitário. O lema era sempre: “Não vale a pena preocuparmo-nos com dinheiro, para restaurar os laboratórios da FCUAN, pois iremos para o ‘campus’, onde tudo estará resolvido.”

E não foram para o ‘campus’?

Fomos, mas não encontrámos os laboratórios de que precisamos. Por isso, os cursos de Biologia e Geologia, por exemplo, não foram para lá e continuam aqui, na Marginal de Luanda, uma vez que exigem laboratórios desde o 1.º ano. 

Quem devia colocar?

O mesmo organismo que nos entregou o Campus Universitário. Nós recebemo-lo do Ministério da Construção. 

Como este ministério justifica a falta de laboratórios?

Será bom perguntar isso aos dirigentes da reitoria da Universidade Agostinho Neto (UAN). Havia promessa de que teríamos o ‘campus’ finalizado em 2028. Os laboratórios de especialidade estavam prometidos para 2014, mas já estamos em 2018… Tínhamos várias promessas que não se concretizaram. É um problema que já foi relatado a várias entidades. Já lá esteve a 6.ª comissão da Assembleia Nacional e o ex-vice-Presidente da República, Manuel Vicente.

Com essas insuficiências, pode deduzir-se que a FCUAN anda a improvisar…

Não, não andamos a improvisar. O que não conseguimos é dar formação a muita gente. Por exemplo, sonhávamos ter, no Campus Universitário, capacidade para receber mais estudantes de Biologia. Porém, como não conseguimos ter lá os laboratórios, estamos a usar a estrutura na Marginal. Por isso, disponibilizámos poucas vagas.

A FCUAN abriu o doutoramento em Geologia. Com problemas nas licenciaturas, qual é a lógica para ter dado este passo?

Não generalize, por favor! Em relação ao doutoramento em Geologia, foram criadas as condições. Temos empresas que nos ajudam em aspectos específicos, como na compra de equipamentos modernos para os laboratórios. Se vier um dia filmar ou fotografar uma sala de aulas do 2.º ano do curso, verá que o estudante tem a sua batinha e o seu microscópio. Não que tenhamos um orçamento famoso, mas porque recebemos apoios que permitem que estejamos munidos de equipamentos que sirvam os estudantes, da licenciatura ao doutoramento.

“Os nossos trabalhos abordam os problemas que afectam a sociedade”

Com que docentes vão assegurar os doutoramentos, tendo admitido que há carências?

Além dos nossos professores, temos acordos com outras instituições. Com o programa ‘Erasmus’, que inclui outras universidades de língua portuguesa, temos a garantia de que, para todas as disciplinas ou módulos em que faltar um docente angolano, aparecerá um professor estrangeiro a cobrir. 

Como geóloga, nota que os angolanos têm noção da importância do curso?

Sim, sim. A corrida ao curso de Geologia é grande. Não é o mais concorrido, é certo. O mais concorrido é o de Ciências da Computação, que é um curso com boa formação e cujos estudantes conseguem emprego antes mesmo de o terminarem. Mas Geologia é muito procurado também.

Há quem critique as instituições de ensino superior (IES) por não terem projectos com impacto para o desenvolvimento da sociedade…

Não posso falar das outras IES. Mas, na FCUAN, se for ver a lista dos trabalhos de fim de curso, verá que estão lá abordados os problemas que afectam a sociedade, das cheias às ravinas, passando pela qualidade dos alimentos. Está tudo lá, quer na licenciatura, quer no mestrado. E o mesmo vai acontecer com o doutoramento.

Nas cerimónias de outorga de diplomas, estudantes das IES privadas publicaram textos com erros de português. Houve quem dissesse que o problema era transversal às IES públicas…

Sim, sim. É um problema geral – da juventude que tem pouca apetência para leitura e das pessoas que meteram na cabeça que o português não é nossa língua. Temos bons professores de português, é preciso vincar isso; mas a maior parte das pessoas que lecciona português mal sabe sequer o português para si mesma.

E como é que alguém dá aulas sobre algo que não conhece?

E onde é que se iriam buscar professores de português?

Então, para a professora, é melhor fazer mal do que não fazer…

Olhe, o lema tem sido… não posso falar em nome do Ministério da Educação. Mas noto que os problemas são cada vez piores em relação ao uso do português. Contudo, também noto que, nas áreas técnicas, Geologia, por exemplo, o mesmo estudante que dá erros ao escrever pode ser brilhante na parte técnica.

Qual deve ser a atitude do professor nestes casos?

Se reprovarmos os estudantes pelos erros de português, poucos seriam os estudantes aprovados. Não estou a concordar com isso! Estou contra! Tem de se corrigir, mas isso não começa na universidade. Tem de se começar na base. O menino da iniciação tem de ser habituado a ler e tem se apostar na formação de formadores. E isso vai levar tempo, mas, com vontade, pode chegar-se lá.

Embora se mostre preocupada com a qualidade do português, a FCUAN não tem essa disciplina…

Onde íamos buscar tantos professores de português?! Cairíamos na ratoeira de admitir docentes que não falam tão bem essa língua.

Está a dizer que, em Angola, não existem técnicos para cobrir a implementação do português na FCUAN?

Não, não é que não existam! O problema é que não os teríamos em número suficiente. Por outro lado, não sobrecarregaríamos um técnico de Biologia, por exemplo, com Português 1, 2 e 3. Isso é como uma câmara: não foca em dois pontos ao mesmo tempo. Se focássemos no português, teríamos de desfocar a componente técnica. Por outro lado, a correcção, para ter efeito, tem de começar na base.

O que pensa do novo Plano de Desenvolvimento Nacional, que prevê que, a partir de 2022, haja anualmente 33 mil diplomados?

O país precisa de muitos quadros, sim; mas temos de deixar aquela política de que ‘na falta de maduro, o verde serve’. A estes números tem de ser acrescido a palavra qualidade. Este plano é uma meta, mas precisamos de juntar uma série de condições para que se forme gente para a sociedade que temos em vez de formar gente que corre o risco de ficar desempregada.

O NG fez recentemente um trabalho em que constatou que há monografias à venda a 400 mil kwanzas, com envolvência de professores. A FCUAN já ‘apanhou’ estes casos?

Não ponho as mãos no fogo por toda a gente! Mas as especificidades dos nossos cursos não facilitam esta prática. Por exemplo, o estudante tem de mostrar como fez as análises, exemplificar onde e como já se fez o mesmo trabalho e até ainda conta um relatório da empresa onde esteve a estagiar.

Que legado pretende deixar na FCUAN?

Gostaria que quem viesse depois de mim continuasse esse trabalho de juntar as pessoas, permitindo que todos contribuam. E que os meus sucessores tenham mais sorte que eu, porque havia projectos para fazer crescer os diferentes departamentos, mas as verbas não permitiram.

50 anos no activo

A Faculdade de Ciências foi criada em 1963 para instalação dos Estudos Gerais Universitários de Angola, integrados na Universidade Portuguesa. Em 1968, transformou os Estudos Gerais Universitários de Angola em Universidade de Luanda, permitindo que as licenciaturas passassem a ser ministradas totalmente em Angola, sem a necessidade de os formandos terminarem os cursos em Portugal. Actualmente, ministra nove licenciaturas (Geologia, Biologia, Engenharia Geográfica, Física, Geofísica, Química, Meteorologia, Matemática e Ciências da Computação), sete mestrados (estando quatro a funcionar) e um doutoramento em Geologia.

Geóloga por excelência

Suzanete Nunes da Costa, de 67 anos, é natural de Luanda. Foi estudante da Faculdade de Ciências da Universidade Agostinho Neto, onde entrou em 1969 e concluiu a licenciatura em Geologia para, em Abril de 1976, começar o percurso de docente, passando por diversos cargos de chefia. Em 2015, ascendeu ao cargo de decana. É doutorada em Geologia pela Universidade de Pádua, Itália.

 

 

 

 

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