Os imbróglios do repatriamento

Há qualquer coisa de extraordinariamente estranha no processo que legisla o repatriamento de “capitais ilícitos”. Qualquer coisa que pode ser explicada por alguma precipitação despropositada. Ou por pura maquinação política. Sendo a segunda hipótese mais grave do que a primeira, nenhuma das duas possibilidades é verdadeiramente útil ao interesse nacional. A primeira porque coloca dúvidas e omissões que dificultam inoportunamente o processo. E a segunda porque pode encobrir a instrumentalização da Lei para a agenda da punição selectiva. Vejamos os factos.

Em finais do primeiro semestre, a Assembleia Nacional aprovou, com sentido de urgência, a Lei de Repatriamento de Recursos Financeiros, apesar das críticas da Oposição, que a considerava incompleta. Com a entrada em vigor do diploma, todos os nacionais singulares e colectivos residentes, com recursos ilícitos no exterior, tinham até ao fim deste mês para tratar do respectivo repatriamento. Sob proposta do Governo, a Lei aprovada pelos deputados até parece ter sido desenhada para simplificar ao máximo o processo. As facilidades concedidas são imensas. Entre outros incentivos e benefícios, além da exclusão de quaisquer responsabilidades, incluindo criminais, quem repatriasse de forma voluntária tinha a garantia de ficar com a totalidade dos recursos. A única contrapartida directa para o Estado seria o investimento desses valores em projectos de desenvolvimento económico e social, em condições determinadas pelo titular do poder Executivo.

Ocorre, no entanto, que esses cinco meses de vigência do diploma mostram que, ao contrário do espírito da Lei, a proposta do Governo não foi elaborada necessariamente para facilitar o regresso dos capitais. Apesar de a Lei ter entrado em vigor no dia 26 de Junho, concedendo seis meses para o repatriamento voluntário, até à última semana de Novembro, ninguém estava informado sobre os mecanismos que deveriam ser seguidos pelos eventuais interessados. Só a 28 de Novembro, ou seja, a menos de mês do prazo estabelecido para o repatriamento voluntário é que o Banco Nacional de Angola (BNA) fez sair o instrutivo que orienta a banca sobre os procedimentos. Antes disso, ainda nas primeiras semanas de Novembro, até o próprio governador do BNA, José de Lima Massano, chegou a admitir à Rádio Nacional de Angola que aguardava pela regulamentação da Lei para baixar ordens aos bancos.

Na sua edição desta segunda-feira, 3, o jornal ‘Valor Económico’ fez manchete com o tema, com críticas de responsáveis da Oposição à falta de regulamentação da Lei. E trouxe declarações do vice-Procurador-Geral da República, que também não foram esclarecedoras sobre a possibilidade ou não da aplicação da Lei, sem a devida regulamentação pelo titular do poder Executivo. Mota Liz fez questão de sublinhar, aliás, que nem sequer tinha estudado ainda completamente o diploma. E mais: da parte do Governo houve pronunciamentos contraditórios sobre capitais que já estariam ou não repatriados para contas bancárias em solo angolano.  

Todos esses factos somados conduzem necessariamente às duas hipóteses formuladas atrás. Ou houve precipitação na montagem do diploma, ignorando toda a complexidade envolvente, incluindo os prazos. Ou a Lei foi projectada, sobretudo, como mais um instrumento para viabilizar o castigo selectivo. Concluamos o raciocínio: nenhuma das hipóteses serve verdadeiramente o interesse nacional.