Nós, no mato, não matabichamos à noite

Naquela guerra de 1993, que quase não poupou nenhuma bwala, nem vila, nem cidade, Miguelito, os seis irmãos e os primos foram ‘empurrados’ para Luanda. A vida de dormir dia sim, semana também na mata, debaixo de pedregulhos, feito canta-pedra ou homem das cavernas, estava custosa para Sá Zefa e Sô Manel, que tentaram, ainda, mandar os filhos e sobrinhos à tia Tonha, irmã kasule de Sô Manel, conhecida por todos como ‘a tia única, em Luanda, de bom coração’.

E todos, naquele tempo de comida difícil, foram amontoar-se em casa da tia que já tinha suas quatro bocas e, ainda por cima, com marido que não tinha voltado da tropa, não se sabendo se sobrevivo ou já defunto. Mas ela, tia Tonha, coragem no negócio da kapracinha era só dela, mesmo com a vida difícil, a pôr os filhos a dormir com os primos debaixo da mesa, que recebia as cadeiras  depois do jantar, amparou-os  e coabitaram aquela casota de pau-a-pique de apenas dois minúsculos compartimentos.

A latrina era única, num quintal comum de cinco famílias e perto de 50 pessoas. Quando chegasse o momento de esvaziar a bexiga ou ir ‘às sentinas’, era bicha e, muitas vezes, o bacio de lata de leite, com todas as suas consequências odorentas numa casa pequena, era a solução.

Todos já conheciam a situação e perdoavam-se mutuamente. Às vezes, um vizinho entrava para o banho e o outro tinha emergência estomacal. Soltava a senha, um assobio, e o outro dispensava a latrina. Até os vizinhos do outro quintal também já conheciam a senha para evacuar a ‘casa das sentinas’ e facilitar o aflito. Por isso, todos cooperavam.

- Mana Tonha, tanto sofrimento então, marido da tropa ainda não veio, embora os outros tenham sido já desmobilizados, essas crias todas que te chegaram são de quenhê? – indagava a vizinhança, sobretudo aquela que só ouvia falar de guerra na rádio, nos filmes do Cine Ngola e na televisão de ir se apertar na salinha do vizinho Bernardo. 

- São filhos do môrmão mais velho. São mô sangue puro – dizia, quando questionada sobre onde saíra aquela ‘creche’.

Certo dia, o negócio não tinha dado lucro. Pior, não tinha recebido compradores e, para matar a fome, só mesmo pão com chá e óleo de chouriço.

- Sobrinho Miguel, você que é o mais velho, acende o carvão para fazer chá. Hoje o jantar é pão com chá.

- Pão com chá, tia?!

- Sim, pão com óleo de chouriço e chá. Ferve já a água e se ajeitem com, o bocado que há.

- Ó tia, se for só pão com chá, sem funji, deixa estar. Nós, no mato, não ándamos matabichá à noite!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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