Não é por luxo, é para viver

Não é por luxo, é para viver

Feito o primeiro balanço esta terça-feira, as reticências que a ‘Operação resgate’ levantou até aqui mantêm-se. Assim como se mantêm as dúvidas antecipadas pela ‘Operação transparência’. E, mais uma vez, o problema não está nos objectivos de fundo. Já dizíamos, na semana passada, que a intenção do Governo de restaurar a autoridade do Estado deve ser elogiada. Isto quer dizer que o fim último das duas megaoperações é inquestionável. A controvérsia, reitera-se, coloca-se no plano da estratégia. Ou seja, nos caminhos escolhidos para o alcance dos tais objectivos. Aqui os enganos do Governo são indesmentíveis e até têm nome.

O encerramento compulsivo de alguns mercados a céu aberto é um erro grosseiro que roça o escândalo. Porque os milhares de homens, mulheres e crianças que preenchiam todos os dias o enorme mercado dos Correios, em Luanda, não trocavam sacrifícios por luxo. Tampouco o faziam por prazer. Procuravam antes por qualquer coisa que visava à satisfação de necessidades básicas à sobrevivência. O argumento de que o espaço servia também para a cobertura e promoção de práticas criminosas é, no mínimo, ridículo. Porque se esse fosse o grande problema, a solução passaria simplesmente por combater a comercialização dos tais produtos e serviços que incentivam a criminalidade.

As contas são simples. O mínimo de bom senso diria ao Governo que jamais deveria fechar ‘praças’ sem garantir previamente alternativas para quem destas inteiramente depende. E não são dezenas, nem centenas, nem milhares, são literalmente milhões de famílias que dependem desses mercados a céu aberto. Promessas de solução a prazo também soam a insulto, porque a fome não é nada que possa aguardar pelos espaços que o Governo decidir arranjar e quando decidir arranjar.

O outro drama chama-se repatriamento de imigrantes ilegais. Aqui também a prudência não faria mal a ninguém. Já dizíamos, numa outra oportunidade, que as expulsões em massa de estrangeiros requerem sempre mexer com múltiplas sensibilidades. Hoje podemos acrescentar que, não raras vezes, implicam também precedentes diplomáticos com consequências inestimáveis.

Nos últimos anos, o continente africano e um certo Mundo viraram-se contra a Europa que assistiu impávida e serena à carnificina de milhares de migrantes africanos e asiáticos, engolidos pelo Mediterrâneo. Mas também contra o tratamento quase animalesco que muitos países europeus reservavam aos outros milhares que conseguiam sobreviver à travessia. Não se passam ainda muitos meses e o Mundo, com África incluída, bravejou contra a histeria de Trump que decidiu separar milhares de crianças, nascidas nos Estados Unidos, dos respectivos pais. Migrantes que, tal como muitos que se encontram hoje em Angola em situação ilegal, não só não estão envolvidos em práticas criminosas, como chegam a contribuir largamente para a actividade económica. Migrantes, sobretudo africanos, que cometeram provável e somente o erro de procurarem por condições de sobrevivência num país irmão.

É caso para dizer que, se quisermos preservar alguma moral para apontarmos o dedo a quem quer que seja, o repatriamento de ilegais tem de ser repensado. O que vale expulsar africanos instalados em Angola há décadas, que não cometem crimes, que não ‘garimpam’ a nossa riqueza e que vivem honestamente com mulher e filhos angolanos? O que será feito desta mulher e destes filhos angolanos que, abruptamente, se vêem privados do pai (que já é mais angolano do que outra coisa)? Serão obrigados a abandonar também o seu próprio país? A isso pode chamar-se decisão com alcance de Estado? Temos dúvidas.