Carlitos Vieira Dias, músico e instrumentista

“Há problemas graves em reconhecer quem faz arte”

Intérprete, guitarrista e criativo, Carlitos Vieira Dias introduziu novas sonoridades à estrutura tradicional de execução do semba no violão. Aos 69 anos, o filho do mítico Liceu Vieira Dias recusa-se a considerarse ‘mestre’, apesar da vasta experiência e talento que carrega. Em entrevista ao NG, recorda os momentos que viveu quando pertencia a alguns grupos destacados, reaviva o tempo colonial, critica a falta de conteúdo das músicas actuais e queixa-se da “desorganização” dos músicos.

“Há problemas graves em reconhecer quem faz arte”
Mário Mujetes
Carlitos Vieira Dias, músico

Com mais de 50 anos de carreira, que balanço faz?Um balanço positivo. Embora não tenha conseguido realizar alguns objectivos, como gravar mais discos e divulgar mais os trabalhos que tenho feito. Tenho recolhido música tradicional. Só não consegui divulgá-la, porque não há meios.

Já procurou algum apoio?
Por acaso, ainda não. Por enquanto, conto com apoios de alguns amigos.

Que recordações tem do tempodos Kiezos, África Show e outros?

Muito boas. Foi uma época muito áurea. Toquei no N’gola Ritmos, no África Show, com Alberto Teta Lando e fizemos uma série de digressões por toda Angola. Depois gravei o disco com o Rui Mingas, em Portugal.

Naquele tempo, os grupos a que pertencia sentiam-se privados de expressar realidade sociopolítica?

Era difícil cantar. A primeira vez que os Kiezos cantaram uma música que tinha algum sentido que achavam político prenderam os cantores, durante alguns meses. Quando Teta Lando cantou a música ‘Um Assobio Meu’, também foi chamado e interrogadopela PIDE (a polícia política portuguesa). Eles não brincavam, estavam muito atentos. E havia canções que só eram executadas no nosso meio e não podiam ser divulgadas.

Hoje é mais fácil cantar a realidade angolana?
Sim. Melhorou bastante.

Onde estava quando foi proclamada a independência?
Em Luanda e em casa [São Paulo]. Havia muitos tiros ao ar e preferi ficar em casa por segurança. Também estava muito apreensivo, não sabia que resultados haviam de advir daqueles bombardeamentos.

Ajudou a criar a Banda Maravilha…
Sim. A Banda Maravilha surgiu numa altura de defeso. As fábricas de disco tinham parado, os conjuntos estavam desfeitos e nós procurámos uma forma de recolher pessoas para tocar nos bares. Não havia intenção de se tornar numa banda. Uma vez, o André Mingas chamou-nos para fazer o programa ‘Gentes e Tons’ e o nome da Banda Maravilha surgiu no programa… e fcou até hoje.

Sente-se valorizado?
Nem tanto. Mas a minha preocupação não é essa, mas sim continuar a fazer música e, agora mais do que nunca, passar à juventude tudo o que fui adquirindo ao longo do tempo. Também já estou no fim da minha vida. É necessário começar a transmitir isso.

Se o Governo pudesse fazer alguma coisa para que fosse mais valorizado o que seria?
Não sugeria nada. Eles é que têm de pensar como está a música angolana e os músicos. Há problemas graves de reconhecimento para quem faz arte. Não há estruturas. Construíram-se universidades e não construíram um teatro nacional, não há salas condignas para espectáculos. As que existem são todas adaptadas.

Como vê o semba actualmente?
Há contribuições. Embora com algumas coisas que não goste muito, nem vou aqui referir. A
participação dos jovens é importante. Continuam a fazer dentro do possível o que acham melhor. Há músicos da nova geração a interpretar músicas em línguas nacionais.

Sente que existe cuidado com a língua?
Eu também não falo bem as línguas nacionais. Agora, procuro fazer de uma forma correcta.
Quando não sei, procuro as pessoas que falam bem determinada língua nacional para poder interpretar. A iniciativa destes jovens é boa. Desta forma, estamos a tornar mais vivas as nossas línguas. O kimbundu é uma das línguas menos falada hoje. A juventude em Luanda não fala kimbundu nem percebe.

De quem é a culpa?
Isto vem muito de casa. Por exemplo, no meu caso, a língua de berço da minha casa não era o kimbundu. Era o português. O pouco que aprendi foi graças ao meu pai e àminha avó que, às vezes, falavam. E as canções também me ajudaram muito a perceber. Decorava
muitas canções em kimbundu e depois tirava dúvidas e assim fui aprendendo.

A Unac salvaguardava os seus direitos?
É a luta da Unac. A Unac começou a ganhar maior visibilidade depois de Alberto Teta Lando ser o presidente da instituição. O Teta Lando é que começou a defender coisas que antes não eram possíveis, como a reforma do músico e a carteira profssional. Agora temos de continuar e tem de haver maiorunidade no seio dos músicos para melhorar a nossa organização.

Os músicos são desorganizados?
Nem tanto (Risos). Existe um pouco de indisciplina na classe. A verdade é que precisamos de estar mais bem organizados. Há músicos que não são membros da Unac nem estão interessados.

Como avalia o contexto sociopolítico actual?
Gosto de estar longe da política. Não faço declarações nessa direcção. A política é para os políticos.

Quais são as suas referências musicais?
Em Angola, N’gola Ritmos, músicas da turma (Arco Negro). Músicas do mundo, oiço muita brasileira, conjunto África Fiesta, Etel Tobo, Baden Powell, Luís Bonfáe, Ataúlfo Alves, Mano Dibango e outros.

E da nova geração?
Há jovens muito bons como Paulo Flores, Conde, Selda, Ary, Yola Semedo e tantos outros.

Está a preparar alguém para dar continuidade ao seu legado?
Vou tentar trabalhar com esses jovens [Mário Gomes e Divino Larson] e tentar fazer uma música mais trabalhada, menos previsível e mais erudita.

Os jovens preocupam-se pouco com o conteúdo das músicas?
Sim. E isso é grave. Os média têm de ter cuidado com isso. Tem de se escolher melhor as que devem ser divulgadas. Em Angola e no exterior. Lá fora, passam músicas de angolanos que as pessoas até perguntam como é que a música angolana ficou assim. Apenas respondo “não perguntes porque isso é a nova época, são novos actores e eles é que devem responder”.

Considera-se um mestre?
Não! Nem pouco mais ou menos. Sou um apaixonado pela música e, dentro das minhas possibilidades, vou dando a minha contribuição.

Artista dos conjuntos

Carlitos Vieira Dias nasceu a 17 de Novembro de 1949, em Luanda. É casado e tem seis lhos. Apareceu em palco pela primeira vez em 1966, com o grupo ‘Angolanos do Ritmo’, formação que integrava o seu primo, Aguinaldo Vieira Dias, que o levou depois para o conjunto ‘Os Gingas’. Pertenceu aos ‘Pérolas’, ‘Negoleiros do Ritmo’, ‘Kiezos’, ‘África Show’ e ‘Merengues’. Intérprete, guitarrista e criativo, Carlitos Vieira Dias teve o privilégio de assistir, várias vezes, aos ensaios do ‘N’gola Ritmos’ e ouvia o pai, o emblemático Liceu Vieira Dias, nas ocasiões que este se sentava ao piano. Herdeiro das experiências rítmicas do N’gola Ritmos, ajudou a fundar os mais importantes agrupamentos da música popular angolana como Semba Tropical, Banda Maravilha e a Banda Xangola. Já actuou em Cuba, na antiga União Soviética, Inglaterra, França, Brasil, Portugal, África do Sul, entre outros países. Venceu o Prémio Nacional de Cultura e Artes em 2004.

Concerto ‘Canções dos Mestres’

Carlitos Vieira Dias prepara-se para um concerto, marcado para esta sextafeira, 15, no Centro Cultural Camões, em Luanda, às 19 horas, no âmbito do projecto ‘Canção dos Mestres’. Com a voz e o violão, vai interpretar clássicos da música popular angolana, com
destaque para temas do N’gola Ritmos e do disco ‘As vozes de um canto’, no qual fazem parte cancões como ‘Birinbirin’, ‘Palamé’, ‘Lemba’, ‘Colonial’, entre outras. Os bilhetes custam seis mil kwanzas.

Discografia

Quando residia em Lisboa, Carlitos Vieira Dias gravou, integrado na Banda Maravilha, o disco ‘Angola Maravilha’, 1997. Em 2004, decidiu seguir carreira a solo e gravou o primeiro álbum ‘As vozes de Um Canto’, produzido pelo brasileiro Chico Neves, com Carlitos Chiemba, Teddy Nsingui, Mário Garnacho, Marito Furtado, Chico Santos, Dalú Roger, Joãozinho Morgado, Nanutu, Rowney Scott, Serginho do Trombone, Joatan Nascimento, Dorgan Eleonor, Beth Tavira e Dodó Miranda. Para este ano, prevê lançar uma EP, que por enquanto, prefere manter em segredo.

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