Há fome, sim

Nas redes sociais, proliferam piadas, frases feitas, análises, apelos religosos, mas também desabafos. Muitos. E com histórias de rasgar o coração. Há dias, uma mãe contava que o filho estava a ir para a escola com apenas um pão molhado em óleo. Foi o rastilho para que outras mães revelassem as agruras motivadas pelo aumento do desemprego e pelo custo de vida. E ali repete-se a palavra “fome”.

Por isso, estranha-se que o Presidente da República assuma, de forma clara, que “não existe fome em Angola”, na entrevista que deu à RTP. Já não se lhe pede que pare um pouco por Luanda, em vez de seguir pelas ruas a alta velocidade, e repare como as coisas estão feias. Existe fome, sim, no centro da cidade e que se agrava nos arredores e nos longínquos e esquecidos zangos.

Existe fome em Benguela (terra de João Lourenço) nos bairros e em casas que só esperam por uma nova chuvada para se desfazerem. Existe fome nas áridas províncias do Namibe e Cunene e ainda parte da Huíla, Kuando-Kubango, Bié. Existe fome, sim, como indicam as estatísticas internacionais, que colocam Angola num triste 95.º lugar entre 119 países analisados.  O World Poverty Clock, uma ferramenta ‘online’ financiada pela Alemanha, indica que Angola, entre 2016 e 2018, passou de 7,2 milhões de pessoas na pobreza extrema para 8,2 milhões. Há mais um milhão de pobres, num período em que a população cresceu dois milhões. 

Certamente, não existe fome nos condomínios de luxo – só em Luanda são cerca de 200 –, mas os assessores de João Lourenço têm obrigação de dar outra informação ao Presidente. Se tiverem dificuldades de ver ‘in loco’, têm dados internacionais, profusamente divulgados e de fácil acesso.

Sempre tão cáustico com o anterior Governo, João Lourenço perdeu uma oportunidade de atirar as culpas para o passado mais recente. Mas não. Preferiu usar a táctica que foi quase uma bandeira da governação de José Eduardo dos Santos: a culpa de todos os males é da guerra. A tal que já terminou há 17 anos.

Por isso, João Lourenço preferiu que a entrevista fosse dada à portuguesa RTP e não a angolanos e de uma forma suave. As perguntas, mais do que óbvias, estavam todas escritas e nem houve engenho, nem coragem, de fazer perguntas mais, digamos, incómodas.

 

 

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