Maria João Ganga, cineasta e directora da Casa das Artes

“O estado da cultura é um caos”

Maria João Ganga é um dos poucos rostos femininos a realizar cinema e a encenar teatro em Angola. O seu percurso fica marcado pelo filme ‘Na Cidade Vazia’, de 2004, uma das primeiras produções de longa-metragem realizada por uma mulher. Depois disso, não voltou a filmar por falta de patrocínios. Em entrevista ao NG, a actual responsável pela Casa das Artes sente “vergonha” pelo cinema angolano, apela à criação de “políticas concretas” para melhorar o estado da cultura e afirma ser por “conveniência” e “estupidez” dizer que Luanda é uma cidade “hospitaleira”. linda e muito agradável”.

“O estado da cultura é um caos”
Manuel Tomás
Maria Ganga
Maria Ganga

Maria GangaDirectora da Casa das Artes

Nunca recebemos qualquer tipo de apoio do Estado nem qualquer tipo de manifestação de interesse por este projecto.

Em Setembro, a Casa das Artes completou dois anos. Foi possível cumprir com os objectivos?

O nosso balanço é positivo, depois de dois anos de trabalho, embora não tenhamos atingido todas as metas traçadas. O projecto foi muito bem acolhido pelo público e sentimos que os vários artistas, que passaram pela Casa das Artes, se identificam com a nossa linguagem e que se sentem confortáveis a trabalhar no espaço. Não posso deixar de fazer referência ao projecto que denominamos ‘Bolsas’ e que implementamos com sucesso e pelo qual nos orgulhamos bastante.

 

Em que consiste?

Este projecto permite que crianças oriundas de classes menos favorecidas tenham acesso às nossas formações e diferentes actividades, gratuitamente. É muito gratificante sentir que podemos contribuir para a felicidade dos outros, sobretudo quando o ‘outro’ são crianças. Só por isto vale tudo a pena!

 Como são seleccionados os bolseiros?

Contactamos, por exemplo, igrejas ou instituições que por si, são garante de intercâmbio organizado e eficiente com a nossa instituição. As crianças são seleccionadas através de uma audição ou ‘casting’ realizado por pessoas com competência. Exemplo: recentemente criámos um grupo coral e iniciámos aulas de canto orientadas pela conceituada Marília Alberto (soprano).

Ao assumir o desafio de criar a Casa das Artes que dificuldades é que tem enfrentado?

Claro que enfrentamos muitas e inúmeras dificuldades e que temos de enfrentar situações menos felizes. Este projecto foi feito com um financiamento bancário e com meios próprios. Temos de honrar compromissos financeiros, tenho algumas dívidas, falta de meios técnicos, materiais… Gostaria de poder aumentar a equipa técnica. Ainda temos muitas lacunas na comunicação.

Além da Casa das Artes quem mais apoia o projecto?

O projecto é uma realidade possível por sermos apoiados por uma entidade bancária e pelo empenho de algumas pessoas. Contamos com o apoio de entidades (pouquíssimas) e algumas pessoas que singularmente apagam os ‘nossos fogos’. Aliás sempre a mesma, habitual e cansativa conversa de sempre, a de não termos apoios para trabalharmos para projectos culturais. 

A Casa das Artes, entre outros objectivos, surgiu para dar uma nova dinâmica à cultura…

Projectos semelhantes a este, a Casa das Artes, são úteis justamente por imprimirem dinâmicas que mais tarde resultam e têm consequências muito concretas a nível social, humano, mental e familiar. Projectos desta natureza só contribuem para tornar o homem melhor e mais feliz!

Que critérios é que usa para seleccionar eventos?

A selecção de eventos é feita com base em critérios de qualidade. Temos realizado vários eventos sobretudo no teatro, dança e música e procuramos sempre propor ao nosso público qualidade. Para a nossa programação, procuramos o melhor que é feito entre nós, cá em Angola, e procuramos estabelecer parcerias com instituições como, por exemplo, a Alliance Française, que faz do seu melhor em termos de espectáculos e formações.

Acha que os preços praticados na Casa das Artes acessíveis?

São os possíveis dentro da nossa equação financeira. Trabalhamos com orçamentos exíguos e garantimos qualidade na prestação que propomos. Em todas as partes do mundo, este género de projecto tem apoios institucionais. Deveríamos ter políticas de estímulo ao desenvolvimento de actividades como esta. Os preços praticados actualmente são os possíveis. Contudo, para mantermos a nossa qualidade e diversificação de programas, não nos podemos manter nas tabelas praticadas.

O espaço está disponível para aluguer?

O projecto Casa das Artes é autossustentável e o aluguer do nosso auditório contribui muito para o orçamento. Em função das actividades a serem realizadas e do tempo de ocupação do auditório, atribuímos um valor a ser pago. A Casa das Artes e a respectiva direcção têm apoiado a realização de eventos a título de patrocínio a grupos de jovens ou grupos que apresentem dificuldades financeiras comprovadas. Claro, como poderá imaginar, este nosso gesto já foi sujeito a oportunismo muito, muito barato…

Recebe apoio do Estado?

Nunca recebemos qualquer tipo de apoio do Estado ou de instituições oficiais do Governo, nem mesmo qualquer tipo de manifestação de interesse por este projecto. Nem na fase de estudo-projecto, de obra ou mesmo depois de estar aberto ao público. Antes pelo contrário: numa rápida ‘inspecção’ feita por um grupo de anunciados ‘experts’ culturais, vieram incomodar-nos com pormenores ridículos como, por exemplo, um ângulo de uma escada, falta de elevadores, falta de lanche para os ‘visitantes’ e, para colmatar, fizeram um pedido de dinheiro (vulgo ‘gasosa’). Como pode imaginar, dispensamos este tipo de apoio. 

Sendo uma iniciativa que desperta atenção não tem receio que a relação com instituições leve a interferências políticas na gestão da Casa das Artes?

Agora falo como gestora e proprietária do espaço cultural, não receio qualquer tipo de relacionamento, parceria, aproximação ou outra coisa qualquer desde que a intenção ou a motivação sejam trabalhar em projectos concretos, com regras, atingir objectivos, superar desafios e trabalhar de forma útil e concreta. 

Como vê a cultura em Angola?

A cultura e o seu estado de saúde é como todos nós sabemos, um caos! Nós precisamos de rever tudo na cultura (refiro-me às instituições), precisamos de gestores e, acima de tudo, de políticas concretas, projectos concretos, orçamentos concretos e gestão concreta de orçamentos. Deveria começar por se fazer um balanço exaustivo e real do que foi feito e do que foi dito que foi feito. Por consequência, vermos bem o que não foi feito e medir consequências e pedir responsabilidades.

Os angolanos ligam à cultura?

Não entendo bem a sua questão: se os angolanos ligam à cultura? A proposta que está a ser feita aos angolanos é desestruturada, pobre e carece de programas para estimular os angolanos a ligarem à cultura! Não somos diferentes de ninguém e gostamos de cultura.

Numa entrevista, a Maria João considerou Luanda uma cidade “inóspita”. Porquê?

Em relação a Luanda, só por conveniência, estupidez ou maldade se pode dizer que é uma cidade hospitaleira, linda e muito agradável! Aquele centro comercial que foi construído na marginal e que esconde a Fortaleza é horroroso! O prédio é horroroso arquitectonicamente e é horroroso terem tido a insolência de taparem um monumento como a Fortaleza! É insolência intelectual.

Depois do filme ‘Na Cidade Vazia’ não voltou a realizar. Porquê?

Em relação ao cinema, depois de realizar ‘Na Cidade Vazia’, fiz uma curta metragem, tenho o material fechado numa gaveta desde 2007. Lá está, outro projecto que nunca contou com apoio, francamente ridículo! Precisava de cerca de 25 mil dólares para terminar esta curta metragem! Tem noção de quantos milhares foram gastos em ‘blufs’, aos quais deram o nome de cinema? Tem noção de quantos milhares eram gastos em galas supérfluas e em actividades que em nada dignificaram a nossa cultura? A situação do cinema em Angola é uma verdadeira vergonha.

O que espera da governação de João Lourenço? Acredita que se aproximam dias melhores para as artes e para a cultura?

Acredito que o novo Governo vai fazer com a cultura o que está a fazer com os restantes ministérios e com todas as aberrações e anomalias que se consolidaram neste país. Estamos confiantes em dias melhores, como é óbvio. Percebemos que o nosso país bateu no fundo do poço e sabemos que há prioridades. Acreditamos! Nós só queremos trabalhar! A cultura é a alma de um povo. Um assunto demasiado sério.

“O estado da cultura é um caos”

O rosto da Casa das Artes

Maria João Ganga nasceu há 54 anos, no Huambo. Formou-se na École Supérieure d’Études Cinématographiques de Paris, em França. Trabalhou como assistente de realização em vários documentários, entre os quais o ‘Rostov Luanda de Abderrahmane Sissako’.  Também escreveu e realizou peças teatrais.  Em 2004, realizou o filme ‘Na Cidade Vazia’, um drama sobre um grupo de crianças, em Luanda do pós-guerra. Foi a primeira longa-metragem angolana realizada por uma mulher. E valeu-lhe prémios em diversos festivais de cinema como os de Paris, de Cinema Africano, da Ásia e América Latina, de Milão, de Mulheres de Créteil el Vues d’Afrique, em Montreal.

Actualmente, é proprietária e directora da Casa das Artes, localizada na via 5 de Talatona, em Luanda, um espaço de cultura aberto a quase todas as disciplinas das artes. Conta com um auditório e dispõe de um programa de formação com dança, pintura, teatro, capoeira, fotografia e outras actividades criativas.

 

 

 

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